A Estratégia
Nacional de Defesa (END), em vigor desde dezembro de 2008 e desde então aberta
ao conhecimento público, vem interessando à opinião pública? Não. Que
repercussão teve no Congresso, corresponsável pela defesa, numa democracia?
Nenhuma. Este artigo aborda aspectos da END que, esperançosamente, talvez possam
contribuir para despertar interesse pelo tema.
Comecemos com
uma observação instigante: a END foi formulada por comitê dirigido pelo ministro
da Defesa, coordenado pelo Secretário de Assuntos Estratégicos e integrado pelos
ministros do Planejamento, da Fazenda e de Ciência e Tecnologia, assistidos
pelos comandantes das Forças e ouvidas pessoas de saber nessa área. Chama a
atenção a não menção ao ministro do Exterior (à época do preparo do documento, o
hoje ministro da Defesa...), cuja participação seria supostamente
apropriada.
Na contramão
da tradição de autonomia das Forças, a END enfatiza o Ministério da Defesa.
Afirma que "o ministro exercerá (...) os poderes de direção (...) que a
Constituição e as leis não reservarem (...) ao presidente". Centraliza a
"política de compras" e preconiza a "unificação doutrinária, estratégica e
operacional" das Forças - ideias que respondem à tecnologia moderna e pretendem
integrar as visões corporativas das Forças e suas prioridades. Define que o
ministro indica ao presidente os comandantes das Forças - uma ruptura com o
passado, ao conferir ao ministro a intermediação entre o poder político e o
militar.
Sem citar
ameaças, diz a END que as Forças devem ser usadas "para resguardar o espaço
aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras" e que "convém
organizar as Forças em torno de capacidade, não em torno de inimigos
específicos. O Brasil não tem inimigos no presente" - conceito em princípio
correto (ressalte-se o cauteloso no presente...); mas capacidade referenciada a
que tipo e grau de ameaça? Ao criticar a concentração (coerente com o passado)
do Exército no Sudeste e no Sul e da Marinha no Rio de Janeiro, afirma que "as
preocupações mais agudas estão (...) no Norte, Oeste e Atlântico Sul" e sugere
esta distribuição: Amazônia e fronteiras, forças dotadas de mobilidade na região
central para emprego onde necessário e (à primeira vista, desconectada das
preocupações agudas) forças no Sul/Sudeste para defesa da concentração
demográfica e econômica (?), além da maior presença naval no Norte.
A tecnologia e
seu desenvolvimento são enfatizados. O compromisso com a não proliferação
nuclear é complementado pela "necessidade estratégica de desenvolver e dominar
essa tecnologia" - supostamente para fins pacíficos, mas fórmula semântica
ambígua, usada por países (Irã...) que querem manter aberta a porta nuclear. À
ênfase na tecnologia é acrescentado o estímulo à indústria de interesse militar.
Parcerias com empresas estrangeiras são condicionadas à transferência de
tecnologia. Embora realçando a indústria privada, atribui à estatal o
pioneirismo em tecnologia "que as empresas privadas não possam alcançar ou obter
(...) de maneira rentável". Importante: é preconizada a continuidade
orçamentária indispensável aos projetos longos - e até mesmo à sobrevivência
empresarial -, o que há muito não ocorre.
A END afirma
que "o Brasil ascenderá ao primeiro plano (...) sem exercer hegemonia e
dominação". Correto, mas conviria mencionar que para ser membro permanente do
Conselho de Segurança da ONU é condição a responsabilidade correlata, propiciada
também por capacidade militar. Não é cogitada a segurança coletiva como a
pretendida no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) - sem
sentido no pós-guerra fria - e tampouco há menção a substituto sul-americano,
acertadamente porque segurança coletiva pressupõe ameaça comum, inexistente. A
afirmação de que o Conselho de Defesa Sul-Americano "criará mecanismo consultivo
que permitirá prevenir conflitos" aparenta destoar da política regular: prevenir
conflitos cabe a organizações políticas - ONU, OEA, Unasul... Sobre esse
conselho, é sintomática a frase: "... sem que dele participe país alheio à
região", obviamente, os EUA.
A defesa do
serviço militar obrigatório responde à responsabilidade de toda a sociedade pela
defesa nacional - conceito consensualmente escamoteado: não temos recrutas das
camadas superiores da pirâmide social. Entretanto, é preciso conciliá-lo com a
tecnologia moderna, que exige capacitação dificilmente adquirida em dez meses de
serviço militar por recrutas de instrução modesta. O relevo atribuído à
participação em forças internacionais e às forças de pronto emprego e de
operações especiais reforça a influência da tecnologia na configuração dos
efetivos: elas requerem profissionalização. Diz a END que a tecnologia não é
alternativa à mobilização: estará hierarquizando a quantidade sobre a qualidade,
ao contrário do mundo de poder militar eficiente? Há que procurar o equilíbrio
do ideal republicano com o não comprometimento da eficiência, condicionada pela
tecnologia.
Ao afirmar que
"o País cuida para evitar que as Forças Armadas desempenhem papel de polícia", a
redação "cuida para evitar" aparenta aceitar, a contragosto, o papel de polícia,
impróprio numa democracia quando além de episódio crítico que de fato imponha a
ação militar transitória. Essa atuação está exigindo, nas palavras da END,
"legislação que ordene e respalde as condições específicas e os procedimentos
federativos que deem ensejo a tais operações, com resguardo de seus
integrantes".
Enfim, o saldo
da END é positivo. O reconhecimento da conveniência de sua existência e sua
abertura à sociedade já são relevantes, em país onde a defesa nacional não
entusiasma a política e a sociedade. Há espaço para aperfeiçoamentos, alguns
insinuados neste artigo. Mas é improvável que a END possa satisfazer a dimensão
estratégica da inserção internacional do Brasil, a persistir o atual descaso
societário e político pela defesa nacional.
Publicado pela Agencia Estado de São
Paulo, em 31 de agosto de 2011.
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