Como todos os meninos da escola na
minha época, eu não podia cantar o Hino Nacional ou prestar um juramento à
bandeira sem sentir que estava participando de uma pantomima. A gente ria às
escondidas, fazia piadas, compunha paródias escabrosas. Os símbolos do
patriotismo, para nós, eram o suprassumo da babaquice, só igualado, de longe,
pelos ritos da Igreja Católica, também abundantemente ridicularizados e parodiados
entre a molecada, não raro com a cumplicidade dos pais. Os professores nos
repreendiam em público, mas, em segredo, participavam da gozação geral.
Cresci, entrei no jornalismo e no
Partido Comunista, frequentei rodas de intelectuais. Fui parar longe da
atmosfera da minha infância, mas, nesse ponto, o ambiente não mudou em nada: o
desprezo, a chacota dos símbolos nacionais eram idênticos entre a gente letrada
e a turminha do bairro. Na verdade, eram até piores, porque vinham reforçados
pelo prestígio de atitudes cultas e esclarecidas. Graciliano Ramos, o grande
Graciliano Ramos, glória do Partidão, não escrevera que o Hino era "uma
estupidez"?
Mais tarde, quando conheci os EUA,
levei um choque. Tudo aquilo que para nós era uma palhaçada hipócrita, os
americanos levavam infinitamente a sério. Eles eram sinceramente patriotas,
tinham um autêntico sentimento de pertinência, de uma raiz histórica que se
prolongava nos frutos do presente, e viam os símbolos nacionais não como um
convencionalismo oficial, mas como uma expressão materializada desse sentimento.
E não imaginem que isso tivesse algo a ver com riqueza e bem-estar social.
Mesmo pobres e discriminados se sentiam profundamente americanos, orgulhosamente
americanos, e, em vez de ter raiva da pátria porque ela os tratava mal, consideravam
que os seus problemas eram causados apenas por maus políticos que traíam os
ideais americanos.
Correspondi-me durante anos com uma
moça negra de Birmingham, Alabama. Ali não era bem o lugar para uma moça negra
se sentir muito à vontade, não é mesmo? Mas se vocês vissem com que afeição,
com que entusiasmo ela falava do seu país!! E não só do seu país: também da sua
igreja, da sua Bíblia, do seu Jesus. Em nenhum momento a lembrança do racismo
parecia macular em nada a imagem que ela tinha da sua pátria. A América não
tinha culpa de nada. A América era grande, bela, generosa. A maldade de uns
quantos não podia afetar isso em nada. Ouvi-la falar me matava de vergonha. Se
alguém no Brasil dissesse essas coisas, seria exposto imediatamente ao
ridículo, expelido do ambiente como um idiota-mor ou condenado como reacionário,
um integralista, um fascista.
Só dois grupos, neste país, falavam
do Brasil no tom afetuoso e confiante com que os americanos falavam da América.
O primeiro eram os imigrantes: russos, húngaros, poloneses, judeus, alemães,
romenos. Tinham escapado ao terror e à miséria de uma das grandes tiranias do
século (alguns, das duas), e proclamavam, sem sombra de fingimento: "Este
é um país abençoado!" Ouvindo-nos falar mal da nossa terra, protestavam: “Vocês
são doidos”. "Não sabem o que têm nas mãos". Eles tinham visto coisas
que nós não imaginávamos, mediam a vida humana numa outra escala, para nós aparentemente
inacessível. Falávamos de miséria, eles respondiam: "Vocês não sabem o que
é miséria". Falávamos de ditadura, eles riam: "Vocês não sabem o que
é ditadura".
No começo isso me ofendia. "Eles
acham que sabem tudo", dizia com meus botões. Foi preciso que eu estudasse
muito, vivesse muito, viajasse muito, para entender que tinham razão, mais
razão do que então eu poderia imaginar. A partir do momento em que
entendi isso, tornei-me tão esquisito, para meus conterrâneos como um estoniano
ou húngaro, com sua fala embrulhada e seu inexplicável entusiasmo pelo Brasil,
eram então esquisitos para mim.
Digo, por exemplo, que um país onde
um mendigo pode comer diariamente um frango assado por dois dólares é um país
abençoado, e as pessoas querem me bater. Não imaginam o que possa ter sido
sonhar com um frango na Rússia, na Alemanha, na Polônia, e alimentar-se de
frangos oníricos. Elas acreditam que em Cuba os frangos dão em árvores e são
propriedade pública.
Aqueles velhos imigrantes tinham
razão: o brasileiro está fora do mundo, tem uma medida errada da realidade. O
outro grupo onde encontrei um patriotismo autêntico foi aquele que, sem
conhecê-lo, sem saber nada sobre ele, exceto o que ouvia de seus inimigos, mais
temi e abominei durante duas décadas: os MILITARES. Caí no meio deles por mero
acaso, por ocasião de um serviço editorial que prestava para a Odebrecht que me
pôs temporariamente de editor de texto de um volumoso tratado O Exército na
História do Brasil. A primeira coisa que me impressionou entre os militares foi
sua preocupação sincera, quase obsessiva, com os destinos do Brasil. Eles
discutiam os problemas brasileiros como quem tivesse em mãos a responsabilidade
pessoal de resolvê-los. Quem os ouvisse sem saber que eram militares teriam a
impressão de estar diante de candidatos em plena campanha eleitoral, lutando
por seus programas de governo e esperando subir nas pesquisas junto com a
aprovação pública de suas propostas.
Quando me ocorreu que nenhum daqueles
homens tinha outra expectativa ou possibilidade de ascensão social senão as
promoções que automaticamente lhes viriam no quadro de carreira, no cume das
quais nada mais os esperava senão a metade de um salário de jornalista médio,
percebi que seu interesse pelas questões nacionais era totalmente independente
da busca de qualquer vantagem pessoal. Eles simplesmente eram patriotas, tinham
o amor ao território, ao passado histórico, à identidade cultural, ao
patrimônio do país, e consideravam que era do seu dever lutar por essas coisas,
mesmo seguros de que nada ganhariam com isso senão antipatias e gozações.
Do mesmo modo, viam os símbolos
nacionais - o hino, a bandeira, as armas da República - como condensações
materiais dos valores que defendiam e do sentido de vida que tinham escolhido.
Eles eram, enfim, "americanos" na sua maneira de amar a pátria sem
inibições.
Procurando explicar as razões desse
fenômeno, o próprio texto no qual vinha trabalhando me forneceu uma pista. O
Brasil nascera como entendida histórica na Batalha dos Guararapes, expandira-se
e consolidara sua unidade territorial ao sabor de campanhas militares e
alcançara pela primeira vez, um sentimento de unidade auto-consciente por ocasião
da Guerra do Paraguai, uma onda de entusiasmo patriótico hoje dificilmente
imaginável.
Ora, que é o amor à pátria, quando
autêntico e não convencional, senão a recordação de uma epopéia vivida em
comum? Na sociedade civil, a memória dos feitos históricos perdera-se,
dissolvida sob o impacto de revoluções e golpes de Estado, das modernizações
desaculturantes, das modas avassaladoras, da imigração, das revoluções psicológicas
introduzidas pela mídia. Só os militares, por força da continuidade imutável das
suas instituições e do seu modo de existência, haviam conservado a memória viva
da construção nacional. O que para os outros eram datas e nomes em livros
didáticos de uma chatice sem par, para eles era a sua própria história, a
herança de lutas, sofrimentos e vitórias compartilhadas, o terreno de onde
brotava o sentido de suas vidas.
O sentimento de "Brasil",
que para os outros era uma excitação epidérmica somente renovada por ocasião do
carnaval ou de jogos de futebol (e já houve até quem pretendesse construir
sobre essa base lúdica um grotesco simulacro de identidade nacional), era para
eles o alimento diário, a consciência permanentemente renovada dos elos entre
passado, presente e futuro.
Só os militares eram patriotas porque
só os militares tinham consciência da história da pátria como sua história
pessoal. Daí também outra diferença. A sociedade civil, desconjuntada e
atomizada, é anormalmente vulnerável a mutações psicológicas que induzidas do
Exterior ou forçadas por grupos de ambiciosos intelectuais ativistas apagam do
dia para a noite a memória dos acontecimentos históricos e falseiam por
completo a sua imagem do passado. De uma geração para outra, os registros
desaparecem, o rosto dos personagens é alterado, o sentido todo do conjunto se
perde para ser substituído, do dia para a noite, pela fantasia inventada que se
adapte melhor aos novos padrões de verossimilhança impostos pela repetição de
slogans e frases-feitas.
Toda a
diferença entre o que se lê hoje na mídia sobre o regime militar e os fatos revelados
no site do TERNUMA (Terrorismo Nunca Mais) vem disso.
Até o começo da década de 80, nenhum
brasileiro, por mais esquerdista que fosse, ignorava que havia uma revolução
comunista em curso, que essa revolução sempre tivera respaldo estratégico e
financeiro de Cuba e da URSS, que ele havia atravessado maus bocados em 1964 e
tentara se rearticular mediante as guerrilhas, sendo novamente derrotada.
Mesmo o mais hipócrita dos
comunistas, discursando em favor da "democracia", sabia perfeitamente
a nuance discretamente subentendida nessa palavra, isto é, sabia que não lutava
por DEMOCRACIA NENHUMA, mas pelo comunismo cubano e soviético, segundo as
diretrizes da Conferência Tricontinental de Havana. Passada uma geração, tudo
isso se apagou.
A juventude, hoje, acredita piamente
que não havia revolução comunista nenhuma, que o governo João Goulart era
apenas um governo normal eleito constitucionalmente, que os terroristas da
década de 70 eram patriotas brasileiros lutando pela liberdade e pela democracia.
No Brasil, a multidão não tem memória
própria. Sua vida é muito descontínua, cortada por súbitas mutações
modernizadoras, não compensadas por nenhum daqueles fatores de continuidade que
preservava a identidade histórica do meio militar. Não há cultura doméstica,
tradições nacionais, símbolos de continuidade familiar. A memória coletiva está
inteiramente a mercê de duas forças estranhas: a mídia e o sistema nacional de
ensino. Quem dominar esses dois canais mudará o passado, falseará o presente e
colocará o povo no rumo de um futuro fictício. Por isso o site
"TERNUMA" é algo mais que a reconstituição de detalhes omitidos pela
mídia. É uma contribuição preciosa à reconquista da verdadeira perspectiva
histórica de conjunto, roubada da memória brasileira por manipuladores
maquiavélicos, oportunistas levianos e tagarelas sem consciência.
Perguntam-me se essa contribuição vem
dos militares? Bem, de quem mais poderia vir?
Olavo
de Carvalho - Filósofo e Cientista Político
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