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Caserna

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE?

Duas Mães

Era uma manhã cinzenta, chuvosa, como costumam ser as manhãs, e os dias, nos feriados de finados.  O cemitério estava lotado de gente, capas e guarda-chuvas que, abertos, formavam um, mórbido, caleidoscópio.
Do lado de fora, os camelôs estavam em estado de graça: nunca se vendeu tantas flores, velas, santinhos e outras bugigangas que se compra para honrar a memória dos que se foram. Para sempre, segundo os céticos e até a ressurreição da carne, para os crentes.
No meio da confusão e da profusão de flores, velas, cores, capas, guarda-chuvas, duas senhoras, sozinhas, uma branca e uma negra, ambas já em idade um pouco avançada, arrumavam os túmulos de algum parente. Elas mesmas limpavam o local, lavavam as lápides, retiravam as flores secas e trocavam por flores novas, raspavam os restos de velas antigas e preparavam os castiçais para receber velas novas.
Em um dado momento, se entreolharam por uns segundos, a senhora negra se aproximou, viu a foto de um jovem na lápide e perguntou: - Seu filho? Como ele morreu?
- Não sei bem - respondeu a branca. – Um dia ele saiu de casa dizendo que não aguentava mais ver as coisas do jeito que estavam, que o povo tinha direito à liberdade, que ia lutar com todas as forças para tirar os militares do poder e implantar no Brasil um sistema onde não haveria mais pobre, nem rico e em que todos seriam iguais. Só sei que, depois desse dia, nunca mais o vi, até o dia em que o corpo dele apareceu numa calçada, em um subúrbio do Rio, com um tiro no peito. Ele só não foi enterrado como indigente porque o motorista do rabecão era o nosso vizinho e o reconheceu. Foi Deus que ajudou. Nunca descobriram que o matou, nem porque atiraram nele. Não sei o que deu nele. Estava terminando a faculdade e namorava uma moça de quem eu gosto muito. Eu achava que logo, logo ia ser avó, e tudo acabou assim.
Já com lágrimas nos olhos, perguntou: - E você, é seu filho também, como ele morreu?
- É sim – respondeu a negra. – Conforme me informaram, ele morreu em um tiroteio com terroristas. Ele era Tenente do Exército, andava preocupado, vivia dizendo que havia uns “rebeldes sem causa”, um bando de terroristas que estava tentando derrubar o governo, dizendo que queriam a volta da democracia, mas o que pretendiam mesmo era implantar um regime comunista no Brasil. E que ele ia fazer o que pudesse pra ajudar a botar esses agitadores na cadeia. Foi de madrugada, sabe. Um amigo dele me contou o que houve. Parece que eles entraram em um tal de “aparelho”, mas a turma reagiu atirando e acertaram ele. Mesmo ferido, ele atirou e parece que acertou alguém, mas os sujeitos conseguiram fugir. Eu já estava de pé, preparando o café pra ele, quando aquele jipe verde parou na minha porta e o Major tocou a campainha do portão. Eu adivinhei logo: meu filho não ia voltar pra casa nunca mais. Também nunca descobriram quem eram os desgraçados que estavam no tal aparelho, nem quem atirou nele.

De repente, meio sem saber por que, entre lágrimas e soluços, as senhoras se abraçaram num gesto de consolo mútuo e, quase simultaneamente, concluíram: - “o seu filho pode ter matado o meu”.

Como que adivinhando, uma, o pensamento da outra, se afastaram e se olharam firmemente, como se pedissem desculpas pelas atitudes dos filhos.

Em profundo silêncio, recolheram cada uma suas coisas, saíram lado a lado do cemitério e, no portão, abraçaram-se mais uma vez, apertaram as mãos e se foram, cada uma carregando a sua dor.

Rio de Janeiro, 11/12/2014
Cel Jorge Bastos Costa
A propósito do relatório da “Comissão Nacional da VERSÃO” 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Dia

                       * Sérgio Paulo Muniz Costa

O debate da presente eleição presidencial recebeu muitas críticas pela falta de relevância dos temas ou pelo viés ofensivo para o qual descambou, mas, conquanto seja de estranhar que essas preocupações só tenham ocorrido depois que o candidato Aécio Neves respondeu ataques da mesma natureza daqueles que desconstruíram a candidatura de Marina Silva, o que verdadeiramente está em jogo é a percepção do que significa para o Brasil a reeleição da candidata do PT. E, ao contrário das críticas costumeiras que recebe, neste aspecto, a oposição política está cumprindo o seu papel, ao lançar uma poderosa palavra de ordem para o Brasil ir às urnas e defender a escolha que ali fizer. O que na verdade falta é apercebermo-­‐nos da seriedade da situação em que vivemos, na qual a oposição vem a público pronunciar, com todas as letras, o que significa o dia da eleição.
Toda ditadura é intrinsicamente corrupta, uma verdade histórica que contraria a imagem de severidade e austeridade com que ela procura se justificar. “Hitler ficava feliz por satisfazer o desejo infinito de seus subalternos pelos adornos materiais do poder e do sucesso, sabedor que a corrupção em escala maciça assegurava lealdade”(IAN KERSHAW). O ocaso da União Soviética revelou, mais do que uma abismal ineficiência econômica, a mais pervertida relação entre poder e privilégios de que se tem notícia, materializada na nova classe da Nomenklatura, composta pelos gestores do partido comunista que tudo controlavam e viviam como barões cercados da precariedade e penúria da população. Também são conhecidos o gosto do ditador norte-­‐coreano Kim Jong-­‐ Il (1941-­‐2011) por vinhos franceses e a sua bilionária conta bancária, bem como vão aflorando as notícias sobre a fortuna e vida luxuosa dos Castro à custas de Cuba. São constatações que não devem surpreender, pois sem a corrupção a ditadura não tem como sobreviver.
Toda ditadura é desestabilizadora, outra verdade extraída do obituário dos totalitarismos do século XX. Ela não pode se conter num dado estado de coisas, por que, na ausência de competição democrática, o seu centro de poder se torna isolado e vulnerável, tendo, portanto, de promover seguidas “revoluções” expressas em medidas excepcionais, tanto na política interna, quanto na externa. É a fuga permanente para o futuro, consubstanciada, internamente no arbítrio sobre a sociedade, e externamente, na promoção ou apoio de agressões e hostilidade ao sistema internacional que, em sua visão ideológica, contraria seus objetivos. Sem esse “continuum de radicalização”, ditadura alguma é capaz de se sustentar. Quem acalenta projetos ditatoriais não foi, não é e não será honesto, e tampouco benevolente, com tudo e com todos, nem mesmo com seus acólitos, todos meros peões de seu poder. É simplesmente fatal pensar o contrário.

Há cerca de vinte anos, durante um simpósio promovido sobre as tendências políticas do pensamento brasileiro, perguntei a uma personalidade em ascensão na política nacional do que mais precisava o Brasil naquele momento: se da liberdade, a “ausência da constrangimento e de restrição” (MERQUIOR), a liberdade negativa; ou da autonomia, a “fruição livre de direitos estabelecidos ... associada a um sentido de dignidade” (Ibid.), a liberdade positiva. A resposta foi inequívoca: era da autonomia, da liberdade positiva, que mais necessitávamos: a liberdade protegida pela lei e costumes; a liberdade de participar dos negócios da sociedade; a liberdade de consciência e de crença; e a liberdade de vivermos como nos apraz. Dávamos os primeiros passos para a consolidação de nossa democracia, e parecia natural que, uma vez afastados os resquícios de autoritarismo político, a ênfase recaísse na fruição consciente e responsável de direitos. O entusiasmo de alguns painelistas em responder nesse sentido contrastou com o silêncio constrangedor de outra presença. Naquele momento, não era possível avaliar o por quê.
Seria desalentador apenas constatar o quanto regredimos nesses vinte anos, ao deixarmos que a preocupação com o desenvolvimento de nossa autonomia fosse substituída pela luta em prol da preservação de nossa liberdade. Só isso basta para reconhecer que algo muito errado nos aconteceu, sociedade brasileira: permitir que um projeto de poder que jamais escondeu, por princípios e convicções, em discursos e ações, o seu vínculo com a ditadura viesse a nos colocar diante de uma escolha impensável.
Mais animador é a certeza de que somos uma democracia, imperfeita sem dúvida, como tantas, mas ainda capaz de reconhecer o significado da eleição de 2014, que, pelo seu próprio conceito, remete-­‐se em importância a um futuro que vai além dela mesma, pois preservar a liberdade é mais prudente do que sofrer para restaurá-­‐la. Poucas vezes na história das ideias na política brasileira um apelo tão poderoso foi lançado ao eleitorado. É essa ideia que dará nome ao dia da eleição, mesmo depois que ele tiver passado:

O dia da libertação.

* Historiador 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

CLAMOR GERAL!


"A divergência e o debate são comuns e saudáveis em uma democracia. Podemos discordar em muitos pontos, mas tenho certeza que concordamos nos principais valores básicos, essenciais à sociedade que sonhamos para o futuro.
Podemos discordar das privatizações, mas não precisamos aceitar que a roubalheira, o aparelhamento político e a incompetência tomem conta das nossas estatais.
Podemos admirar os programas sociais do PT, mas não precisamos aceitar um governo que mente descaradamente que seus adversários acabariam com eles em um óbvio terrorismo eleitoral.
Podemos não gostar dos EUA, mas não precisamos apoiar um governo que se alia às piores ditaduras do mundo e defende países terroristas.
Podemos não gostar da Globo ou da Veja, mas não precisamos de um governo que tenta controlar a imprensa.
Podemos não gostar do PSDB, mas não podemos aceitar um governo, que se dizia guardião da ética, viver mergulhado em escândalos diários, e se aliar e defender a escória da política nacional como Maluf, Collor, Renan, Sarney, Jader Barbalho.
Podemos não gostar do Aécio, mas não podemos permitir que todas essas práticas sejam incentivadas, premiadas e perpetuadas.  

Podemos querer outras alternativas, mas não podemos deixar no poder uma quadrilha cuja cúpula, mesmo presa na Papuda, é tratada como heróis e continua filiada ao partido!
Não podemos deixar que continuem a sambar na nossa cara, infiltrando membros no STF para livrar seus pares, comprando o legislativo com mesadas, sangrando nosso país em benefício próprio e de ditaduras e pseudodemocracias. Se fizermos isso será um atestado de que somos tão sem-vergonhas quanto eles, que NADA nos choca e tudo pode nessa terra porque não temos mais qualquer capacidade de indignação.
Se você não concorda com isso, é hora de mudar. Voto nulo, branco ou abstenção é o mesmo que endossar suas práticas.
É hora de união contra aqueles que tentam rachar o país, com um discurso irresponsável e preconceituoso de "nós" contra "eles", "pobres" contra "ricos", "negros" contra "brancos", "povo" contra "elite branca"...
Ricos, pobres, mulatos, negros, brancos, sudeste, nordeste, centro-oeste, norte, sul, Aécio, Marina, Eduardo Jorge, não importa... Todos juntos contra a podridão desse grupo corrupto e incompetente. 
Autor Desconhecido.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Basta de PT

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• Dilma foi a terceira pior presidente em termos de crescimento econômico. Só perdeu para Floriano Peixoto e Fernando Collor
 
- O Globo
 
Estamos vivendo um momento histórico. A eleição presidencial de 2014 decidirá a sorte do Brasil por 12 anos. Como é sabido, o projeto petista é se perpetuar no poder. Segundo imaginam os marginais do poder — feliz expressão cunhada pelo ministro Celso de Mello quando do julgamento do mensalão —, a vitória de Dilma Rousseff abrirá caminho para que Lula volte em 2018 e, claro, com a perspectiva de permanecer por mais 8 anos no poder. Em um eventual segundo governo Dilma, o presidente de fato será Lula. Esperto como é, o nosso Pedro Malasartes da política vai preparar o terreno para voltar, como um Dom Sebastião do século XXI, mesmo que parecendo mais um personagem de samba-enredo ao estilo daquele imortalizado por Sérgio Porto.
 
Diferentemente de 2006 e 2010, o PT está fragilizado. Dilma é a candidata que segue para tentar a reeleição com a menor votação obtida no primeiro turno desde a eleição de 1994. Seu criador foi derrotado fragorosamente em São Paulo, principal colégio eleitoral do país. Imaginou que elegeria mais um poste. Não só o eleitorado disse não, como não reelegeu o performático e inepto senador Eduardo Suplicy, e a bancada petista na Assembleia Legislativa perdeu oito deputados e seis na Câmara dos Deputados.
 
A resistência e a recuperação de Aécio Neves foram épicas. Em certo momento da campanha, parecia que o jogo eleitoral estava decidido. Marina Silva tinha disparado e venceria — segundo as malfadadas pesquisas. Ele manteve a calma até quando um dos seus coordenadores de campanha estava querendo saltar para o barco da ex-senadora.
 
E, neste instante, a ação das lideranças paulistas do PSDB foi decisiva. Geraldo Alckmin poderia ter lavado as mãos e fritado Aécio. Mas não o fez, assim como José Serra, o senador mais votado do país com 11 milhões de votos. Foi em São Paulo que começou a reação democrática que o levou ao segundo turno com uma vitória consagradora no estado onde nasceu o PT.
 
Esta campanha eleitoral tem desafiado os analistas. As interpretações tradicionais foram desmoralizadas. A determinação econômica — tal qual como no marxismo — acabou não se sustentando. É recorrente a referência à campanha americana de 1992 de Bill Clinton e a expressão "é a economia, estúpido". Com a economia crescendo próximo a zero, como explicar que Dilma liderou a votação no primeiro turno? Se as alianças regionais são indispensáveis, como explicar a votação de Marina? E o tal efeito bumerangue quando um candidato ataca o outro e acaba caindo nas intenções de voto? Como explicar que Dilma caluniou Marina durante três semanas, destruiu a adversária e obteve um crescimento nas pesquisas?
 
Se Lula é o réu oculto do mensalão, o que dizer do doleiro petista Alberto Youssef? Imagine o leitor quando o depoimento — já aceito pela Justiça Federal — for divulgado ou vazar? De acordo com o ministro Teori Zavascki, o envolvimento de altas figuras da República faz com que o processo tenha de ir para o STF. E, basta lembrar, segundo o doleiro, que só ele lavou R$ 1 bilhão de corrupção da Refinaria Abreu e Lima. Basta supor o que foi desviado da Petrobras, de outras empresas e bancos estatais e dos ministérios para entender o significado dos 12 anos de petismo no poder. É o maior saque de recursos públicos da História do Brasil.
 
Nesta conjuntura, Aécio tem de estar preparado para um enorme bombardeio de calúnias que irá receber. Marina Silva aprendeu na prática o que é o PT. Em uma quinzena foi alvo de um volume nunca visto de mentiras numa campanha presidencial que acabou destruindo a sua candidatura. Não soube responder porque, apesar de ter saído do PT, o PT ainda não tinha saído dela. Ingenuamente, imaginou que tudo aquilo poderia ser resolvido biblicamente, simplesmente virando a face para outra agressão. Constatou que o PT tem como princípio destruir reputações. E ela foi mais uma vítima desta terrível máquina.
 
O arsenal petista de dossiês contra Aécio já está pronto. Os aloprados não têm princípios, simplesmente cumprem ordens. Sabem que não sobrevivem longe da máquina de Estado. Contarão com o apoio entusiástico de artistas, intelectuais e jornalistas. Todos eles fracassados e que imputam sua insignificância a uma conspiração das elites. E são milhares espalhados por todo o Brasil.
 
Teremos o mais violento segundo turno de uma eleição presidencial. O que Marina sofreu, Aécio sofrerá em dobro. Basta sinalizar que ameaça o projeto criminoso de poder do petismo. O senador tucano vai encontrar pelo caminho várias armadilhas. A maior delas é no campo econômico. O governo do PT gestou uma grave crise. Dilma foi a terceira pior presidente da história do Brasil republicano em termos de crescimento econômico. Só perdeu para Floriano Peixoto — que teve no seu triênio presidencial duas guerras civis — e Fernando Collor — que recebeu a verdadeira herança maldita: uma inflação anual de quatro dígitos. O PT deve imputar a Aécio uma agenda econômica impopular que enfrente radicalmente as mazelas criadas pelo petismo. Daí a necessidade imperiosa de o candidato oposicionista deixar claro — muito claro — que quem fala sobre como será o seu governo é ele — somente ele.
 
Aécio Neves tem todas as condições para vencer a eleição mais difícil da nossa história. Se Tancredo Neves foi o para que o Brasil se livrasse de 21 anos de arbítrio, o neto poderá ser aquele que livrará o país do projeto criminoso de poder representado pelo PT. E poderemos, finalmente, virar esta triste página da nossa história.
 
Marco Antonio Villa é historiador

domingo, 5 de outubro de 2014

MEU LAMENTO DE VERGONHA


 
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
 Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
Assim, um pobre brasileiro
De povo dito faceiro
Pergunto-me o dia inteiro
Quando sairemos desse chiqueiro?

Um país tão maravilhoso
Com umas terras tão benditas
Que tem destino horroroso
Com essa canalha maldita
Políticos tão asquerosos
Ladravazes sem qualquer pudor
E ainda assim poderosos
Que perpetuam nosso horror
Súcia em tudo maldita
Sanguessuga do que é público
Que provoca tanta desdita
E o povo? Olha a tudo abúlico!
Povo desprovido de cultura
Que se vende por tão pouco
Talvez sirva uma dentadura
Ou em seu barraco um reboco
Onde estão os homens honrados?
Por onde anda a probidade?
Esses, que pena – estão acuados
Perdidos nessa imoralidade
E nesse beco que parece
Não possuir uma saída
O que nos resta – uma prece?
Fingir que não há desdita?
Eu acredito que não
Não desisto de minha terra
Resolva-se então no canhão
E que seja bem-vinda a guerra
Nenhuma grande Nação
Em toda a história do Mundo
Obteve glória e projeção
Sem caudais de sangue profundo
Desvios de todos os valores
Degradação da família
São hoje alguns fatores
Que a todos corrompe e vicia
Confesso, sinto-me envergonhado
De ser de um povo tão fuleiro
Um território privilegiado
Mas – é triste ser brasileiro
E assim, nas calhas de roda
Gira, a esmagar a razão
Esse comboio de corda
Que se chama coração
Saint-Clair Paes Leme – poeta de botequim pé-sujo,
com a licença poética do fantástico Fernando Pessoa

domingo, 28 de setembro de 2014

Sem limites

                                                                                                                                                                                                                                                                         
                                                                                                                                            * Sérgio Paulo Muniz Costa


A publicação em 25 de setembro pelo jornal O Globo do editorial “Limites da Comissão Nacional da Verdade”, enseja reflexões quanto à postura da imprensa em relação a temas sensíveis e polêmicos, como as violações de direitos humanos acontecidas no decorrer da luta revolucionária armada durante os anos 60 e 70 no Brasil. É notório que a grande imprensa não vem dispensando o mesmo espaço e tratamento às opiniões antagônicas sobre essa questão, algo que diz respeito não apenas a militares ou guerrilheiros, mas à sociedade como um todo, e nesse contexto o editorial de O Globo renova as preocupações quanto ao presente e ao futuro de uma imprensa livre no país, aspecto crucial para a sobrevivência da democracia no Brasil.
Um ministro da propaganda disse em certa ocasião a donos de jornais e outros representantes do setor que “a excelente imprensa nacional precisava enxergar uma situação ideal no fato de ela ser na mão do governo uma espécie de piano que o governo pode tocar”1. Como no Brasil de hoje ninguém ousa desmentir a existência de um “Ministério da Propaganda“ espraiado nos meandros da República e muito bem instalado no Palácio do Planalto, é lícito perguntar se o governo está ou não tocando o piano da imprensa. Aparentando uma postura equânime, no estilo “uma no cravo e outra na ferradura“, o editorial de o Globo omite, erra e distorce na forma e no conteúdo, inapropriada e desequilibrado respectivamente, considerando-­‐se que se trata de um jornal dessa tradição e importância.
Omite, ao não apontar que é o próprio governo que intenta alterar a Lei da Anistia, o mesmo governo que constitui de forma sectária em sua Casa Civil uma comissão ideológica; que não desautoriza qualquer das declarações de membros dessa comissão naquele sentido e que consente a alteração do escopo de seus trabalhos à revelia da lei aprovada pelo Congresso Nacional, o qual, mais uma vez, aceita ser enganado e desautorizado.
Erra, grosseiramente, ao atribuir a origem da questão a “conflitos entre o poder político e as Forças Armadas de quatro, cinco décadas atrás” e a propor “identificar responsáveis” fora da esfera judicial. É extremamente preocupante assistir um jornal da importância de O Globo assumir em matéria editorial erros tão crassos. O primeiro, por desconsiderar fatos para acolher interpretações radicais. Ora, se está em julgamento o Movimento de 31 de Março de 1964, cabe lembrar aos historiadores que o Globo consultou (dos quais não necessitaria se compulsasse seus próprios arquivos) que ele se originou de um conflito no poder político e que foi esse poder que deu posse a um presidente eleito pelo Congresso. Se está em julgamento a ação repressiva do Estado contra a guerrilha, cabe lembrar que as forças armadas e polícias defendiam o poder político que as organizações radicais de esquerda queriam derrubar. No segundo caso, quanto à responsabilização, como os juristas de fancaria pretendem “identificar responsáveis sem fins judiciais, até por um dever humanitário do Estado para com as famílias”? Com as inquirições unilaterais, escrachos e depredações que alegremente destroem reputações e carreiras sem qualquer compromisso com a Justiça e o Direito? Que famílias? De algumas ou de todas atingidas indiscriminadamente pela violência?
Distorce, ao lembrar, parcialmente as vítimas militares do terrorismo de esquerda, quando deveriam ser identificadas, e muito bem lembradas, as não poucas vítimas civis de uma violência que está longe de ser condenada no Brasil. Distorce o sentido da palavra “atuar”, que no léxico dos radicais homiziados na estrutura governamental significa punir e calar quem quer que se manifeste contra o arbítrio e possa ser menosprezado pelos príncipes da verdade como um não cidadão, incapaz de exercer seu direito de opinião. Quanto a esse aspecto, repito aqui um comentário que recebi quando da divulgação do malfadado editorial: "Quando os radicais falam e escrevem, o Globo publica e bate palmas. Quando um general da reserva fala, é “arroubo” que deve ser contido pelos comandantes para se manter a serenidade". Assim, na falta de argumentos, nega-­‐se espaço à opinião contrária e volta-­‐se à velha prática da ameaça, pouco importa que ela seja absolutamente ilegal.
Para enorme azar de O Globo, na mesma data em que publicou seu desastrado editorial, repercutiram as desastradas declarações da presidente da República na oportunidade da Abertura da Assembleia-­‐Geral da ONU, com as quais ela condenou as medidas da comunidade internacional contra o novo surto de terrorismo islâmico no Oriente Médio. Confirmou-­‐se aquilo que se esconde há algum tempo no país: um governo controlado por pessoas que nunca se sentiram obrigadas a pedir desculpas pelos atos de terrorismo que cometeram em seu país será sempre incapaz de se posicionar com clareza em relação ao terrorismo internacional. Não só pela surpreendente falta de legislação pertinente, mas agora também por meio de declarações inoportunas e mal direcionadas de sua presidente em tribunas internacionais, o Brasil vai se posicionando erroneamente no cenário mundial. Oxalá, isso não traga consequências graves para os brasileiros.
A questão é, portanto, outra: o Estado somos nós, a sociedade politicamente organizada, sobre a qual recairão as consequências dos erros cometidos por aqueles transitoriamente incumbidos de nos representar e governar. Tratemos pois de enfrentar os erros de nossa sociedade e não os facilmente atribuíveis ao Estado, essa entidade misteriosa, com fundos infindáveis e culpas infinitas, em cujo remanso se expiam tantos fracassos e omissões. Tratemos de enfrentar o erro da violência política do marxismo que derrotado nas suas expressões guerrilheiras urbana e rural há mais de quarenta anos está aí renascido e travestido como movimentos anárquicos que ameaçam a paz social. Tratemos de enfrentar a fraqueza de uma imprensa dita forte que se dobra aos interesses cartoriais, desinformando e confundindo a sociedade como serviçal volúvel do momento político. Tratemos de enfrentar a soberba dos poderosos que se julgam acima do bem e do mal, senhores do monopólio da verdade com que pretendem ignorar e fazer ignorar as discordâncias que devem existir em qualquer sociedade democrática. Foram fraquezas como essas que, não enfrentadas, acumularam-­‐se até o ponto da ruptura em outras épocas de nossa História, custando caro ao País e à sua evolução social e política.
Não se reconhece aqui neste texto qualquer inferioridade cedida por se dar resposta a mais uma iniciativa despropositada que ocupou as manchetes durante dois dias e, particularmente, a um editorial que, se pretendia corrigir algum excesso, acabou por cometer outros piores. Resgatam-­‐se, ou pelo menos tenta-­‐se resgatar, os saudáveis hábitos do debate, dissenso e apreciação de perspectivas distintas. De antemão, repudia-­‐se qualquer tentativa de classificar este texto de cerceador ou constrangedor da imprensa: quem o assim enxergar está tentando fugir ao debate, para o qual o autor deste texto permanece à disposição.
Estranha-­-se sim que em momento tão sensível, às vésperas de eleições cruciais para o País, tenha brotado de um gabinete ministerial, justamente o da Defesa, em evidente sincronia com a Comissão Nacional da Verdade, uma notícia tão perturbadora, carimbada pelo governo, divulgada e reiterada com tanto destaque. Instalou-­‐se uma crise, sem dúvida. É o ressurgir do Leviatã, capaz de impor uma tréplica a uma réplica que não houve, de ameaçar sem respaldo na Lei e de impor a verdade única.
Não se trata de limites de uma comissão, mas da falta de limites do Estado.
 
* Historiador 

LONGERISH, Peter. Joseph Goebbels: uma biografia. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2014. p. 214.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

ANÁLISE FRIA

O ESTADO DE S. PAULO
  
O Brasil é um país fantástico.Nulidades são transformadas em gênios da noite para o dia. Uma eficaz máquina de propaganda faz milagres. Temos ao longo da nossa História diversos exemplos.O mais recente é Dilma Rousseff.
Surgiu no mundo político brasileiro há uma década. Durante o regime militar militou em grupos de luta armada, mas não se destacou entre as lideranças.Fez política no Rio Grande do Sul exercendo funções pouco expressivas. Tentou fazer pós graduação em Economia na Unicamp, mas acabou fracassando,não conseguiu sequer fazer um simples exame de qualificação de mestrado. Mesmo assim,durante anos foi apresentada como "doutora" em Economia.Quis-se aventurar no mundo de negócios, mas também malogrou. Abriu em Porto Alegre uma lojinha de mercadorias populares, conhecidas como "de 1,99". Não deu certo. Teve logo de fechar as portas.
Caminharia para a obscuridade se vivesse num país politicamente sério. Porém, para sorte dela, nasceu no Brasil. E depois de tantos fracassos acabou premiada:virou ministra de Minas e Energia.Lula disse que ficou impressionado porque numa reunião ela compareceu munida de um laptop.Ainda mais: apresentou um enorme volume de dados que, apesar de incompreensíveis, impressionaram favoravelmente o presidente eleito.
Foi nesse cenário, digno de O Homem que Sabia Javanês, que Dilma passou pouco mais de dois anos no Ministério de Minas e Energia. Deixou como marca um absoluto vazio.Nada fez digno de registro.Mas novamente foi promovida. Chegou à chefia da Casa Civil após a queda de José Dirceu, abatido pelo escândalo do mensalão. Cabe novamente a pergunta: por quê? Para o projeto continuísta do PT a figura anódina de Dilma Rousseff caiu como uma luva. Mesmo não deixando em um quinquênio uma marca administrativa um projeto, uma ideia, foi alçada a sucessora de Lula.
Nesse momento, quando foi definida como a futura ocupante da cadeira presidencial, é que foi desenhado o figurino de gestora eficiente, de profunda conhecedora de economia e do Brasil, de uma técnica exemplar,durona,implacável e desinteressada de política. Como deveria ser uma presidente a primeira no imaginário popular.
Deve ser reconhecido que os petistas são eficientes. A tarefa foi dura,muito dura.Dilma passou por uma cirurgia plástica, considerada essencial para, como disseram à época, dar um ar mais sereno e simpático à então candidata. Foi transformada em "mãe do PAC". Acompanhou Lula por todo o País. Para ela e só para ela a campanha eleitoral começou em 2008. Cada ato do governo foi motivo para um evento público, sempre transformado em comício e com ampla cobertura da imprensa. Seu criador foi apresentando homeopaticamente as qualidades da criatura ao eleitorado.Mas a enorme dificuldade de comunicação de Dilma acabou obrigando o criador a ser o seu tradutor, falando em nome dela e violando abertamente a legislação eleitoral.
Com base numa ampla aliança eleitoral e no uso descarado da máquina governamental, venceu a eleição. Foi recebida com enorme boa vontade pela imprensa. A fábula da gestora eficiente, da administradora cuidadosa e da chefe implacável durante meses foi sendo repetida. Seu figurino recebeu o reforço, mais que necessário, de combatente da corrupção.Também, pudera: não há na História republicana nenhum caso de um presidente que em dois anos de mandato tenha sido obrigado a demitir tantos ministros acusados de atos lesivos ao interesse público.
Com o esgotamento do modelo de desenvolvimento criado no final do século 20 e um quadro econômico internacional extremamente complexo,a presidente teve de começar a viver no mundo real. E aí a figuração começou a mostrar suas fraquezas. O crescimento do produto interno bruto (PIB) de 7,5% de 2010, que foi um componente importante para a vitória eleitoral, logo não passou de uma recordação. Independentemente da ilusão do índice (em 2009 o crescimento foi negativo: -0,7%),apesar de todos os artifícios utilizados,em 2011 o crescimento foi de apenas 2,7%. Mas para piorar, tudo indica que em 2012 não tenha passado de 1%. Foi o pior biênio dos tempos contemporâneos, só ficando à frente,na América do Sul, do Paraguai. A desindustrialização aprofundou-se de tal forma que em 2012 o setor cresceu negativamente: -2,1%. O saldo da balança comercial caiu 35% em relação à 2011, o pior desempenho dos últimos dez anos,e em janeiro deste ano teve o maior saldo negativo em 24 anos. A inflação dá claros sinais de que está fugindo do controle.E a dívida pública federal disparou: chegou a R$ 2 trilhões.
As promessas eleitorais de 2010 nunca se materializaram. Os milhares de creches desmancharam-se no ar. O programa habitacional ficou notabilizado por acusações de corrupção. As obras de infraestrutura estão atrasadas e superfaturadas. Os bancos e empresas estatais transformaram-se em meros instrumentos políticos a Petrobras é a mais afetada pelo desvario dilmista.
Não há contabilidade criativa suficiente para esconder o óbvio: o governo Dilma Rousseff é um fracasso, uma incompetência total. E pusilânime: abre o baú e recoloca velhas propostas como novos instrumentos de política econômica. É uma confissão de que não consegue pensar com originalidade. Nesse ritmo, logo veremos o ministro Guido Mantega anunciar uma grande novidade para combater o aumento dos preços dos alimentos: a criação da Sunab.
Ah, o Brasil ainda vai cumprir seu ideal: ser uma grande Bruzundanga. Lá, na cruel ironia de Lima Barreto, a Constituição estabelecia que o presidente "devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total".

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A garantia da democracia

                                     
• Sérgio Paulo Muniz Costa

Foi com a Lei da Anistia que o Estado brasileiro reconheceu mortes e torturas durante o regime militar e não com comissões governamentais focadas em interesses bem mais estreitos do que a consolidação da democracia. Hoje, passados vinte anos, é possível constatar o verdadeiro objetivo de muitos marxistas arrependidos e renitentes que assumiram o poder desde meados dos anos 90: a sua redenção perante a História. Irresponsáveis e egoístas, ignoram na sua soberba de poder que o atual estágio de nossa evolução democrática tem um ponto de partida, a inauguração do atual regime em 1985, a única República que não se instalou no Brasil por um golpe de estado, historicamente ancorada, gostem ou não, na Lei da Anistia de 1979.
Sem refletir sobre o significado e consequências de sua atitude, esquecem lições como as deixadas nas palavras de um dos grandes pensadores do século XX, Norberto Bobbio: “uma sociedade democrática, pode suportar a violência criminal: embora dentro de certos limites [...]. Não pode suportar a violência política”. É essa violência politica que o governo brasileiro desconsidera deliberadamente no curso ilegal que promove nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, ao omitir a violência doutrinária que o marxismo instilou no pensamento brasileiro desde os anos 50 e a violência real que o terrorismo causou nos anos 60 e 70, não só contra pessoas constitucionalmente incumbidas da manutenção da Lei e da Ordem, mas contra cidadãos comuns, alheios ou avessos aos projetos revolucionários de tomada de poder pela força.
Obter ilegalmente armas letais; conspirar contra a ordem pública; praticar crimes contra a segurança pública; sequestrar, assassinar e mutilar pessoas; aterrorizar a sociedade mediante atentados causadores de mortes, ferimentos e destruição e, principalmente, pretender fazer da população civil o alvo de represálias do governo, conforme preconizou o teórico da guerrilha urbana Carlos Mariguella, são crimes de violência política, certamente mais graves do que a violência criminal que a sociedade deve enfrentar. Na verdade, a tentativa deliberada de se fazerem apagar tais crimes mediante a criminalização generalizada dos atos de seus antagonistas, passando por cima do esquecimento que beneficiou ambos, deveria se constituir em ilícito contra a sociedade, como aconteceu há pouco tempo na Espanha.

Apagar os próprios crimes pela criminalização discricionária de outrem é, pelo arbítrio, agravar a incapacidade de uma sociedade se relacionar com as violações das normas, a anomia, origem desse risco bastante real à democracia apontado por Ralf Dahrendorf, que é a tirania, em qualquer de suas formas. Afinal, a democracia, mais do que convergência em normas nas quais fruímos a convivência pacífica, é a observância do processo, de cujo desrespeito Bobbio extraiu a advertência que deve nos assombrar permanentemente: “se é que no futuro ainda existirão governos democráticos, algo que não podemos saber com certeza”.
Ao contrário do que se toma hoje do noticiário nacional, o respeito pela letra e espírito da Anistia diz muito pouco quanto aos seus efeitos imediatos, materializados na responsabilização de uns e na absolvição de outros à revelia da Lei. Por inúmeras razões que deveriam ser conhecidas e discutidas pela sociedade brasileira, ela diz respeito a todos nós e ao futuro de nossa democracia.

* Historiador  

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A caminho do bicentenário da Independência

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Colosso continental que emergiu  independente e unificado há 190 anos, o Brasil é caso único na história política das nações,  especificidade explicada pelas origens da sua formação e dinâmica da sua evolução. Nas origens, pela coincidência do adventício miscigenador com o autóctone de um tronco linguístico predominante na geografia não dissociadora. Na dinâmica, por um processo  de fronteira movido a adaptação e aculturamento. Assim, o Brasil seria um país mais antigo do que estamos acostumados a pensar, com uma cultura definitivamente mestiça, espontânea e sincrética.
 
Além de trazer nova vida à colônia, a transferência para o Brasil da sede do Império português em 1808 lhe deu uma base de poder inédita, a mais próxima da profecia do Quinto Império. 
 
Só mesmo a cegueira do nacionalismo, no caso o que dominou as Cortes portuguesas originadas da Revolução do Porto (1820) para desconhecer a robustez do desenvolvimento histórico brasileiro. Em menos de dois anos, entre a adesão de D. João 6º ao sistema constitucional (fevereiro de  1821) e o Grito no Ipiranga (7 de setembro de 1822), o Brasil assumiu seu destino, encaminhado pelo patriotismo de José Bonifácio, pela sensibilidade da Princesa Leopoldina e pela coragem de D. Pedro.
 
São essas as raízes que condicionam a evolução política do Brasil desde a Independência e dão solidez à sua nacionalidade, as mesmas que, no entanto, colocam formidáveis desafios ao seu desenvolvimento.  Sim, por que o Brasil se fez grande e autônomo sem ser protagonista dos grandes acontecimentos que marcaram o Ocidente desde o século 18, parecendo-lhe natural que assim fosse.  Afastado dos grandes fluxos de capital, trabalho e bens que cruzaram o Atlântico Norte, o Brasil se voltou para si próprio, direcionando as energias de seus sonhos e projetos para a integração e articulação de seu vasto interior.
 
Em meados do século 20 ficou claro que nos faltava conhecimento e capital – humano e financeiro – para a empreitada e foi-se buscar no exterior os seus sucedâneos. Dos muitos esforços dispendidos, apenas um, depois de 150 anos, foi capaz de alterar profundamente a paisagem do interior do país, integrar vastas porções de seu território e gerar a riqueza muitas vezes multiplicada que foi primordial para a transformação do Brasil numa potência econômica: a expansão da agricultura. 
 
No momento em que se esgotava o modelo de substituição das importações e com ele o nosso sonho da industrialização, frustrado pelas modificações estruturais da Revolução Tecnológica e da Informação, (a terceira que perdíamos) faltou-nos, sem dúvida, constatar que a fortuna  e o revés que experimentávamos eram faces da mesma moeda: o conhecimento.
 
Hoje, falta-nos muito mais.  Reconhecida a diferença entre crescimento e desenvolvimento econômico, falta assumir que a engenharia social centrada nas transferências de renda é acessória na modificação do quadro de desigualdade social que vige no País.  Numa conjuntura mundial na qual o PIB se mostra menos relevante para aferir o grau de desenvolvimento das sociedades – político, econômico, social e humano– cabe perguntar se, quando e como vamos enfrentar a questão que causa consternação às melhores mesas de seminários e congressos no país: a transformação do Brasil numa sociedade baseada no conhecimento. Se uma nação é o resultado do que ela entende como sua História, ela será o que for ensinado pelas lições que desta souber extrair. Dez anos é tempo suficiente  para se preparar mais do que uma festa.
 
 
Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

UM VESTIDO NOVO PARA UM ÓDIO ANTIGO


Pilar Rahola
Segunda-feira à noite, em Barcelona. No restaurante, uma centena de advogados e juizes. Eles se encontraram para ouvir minhas opiniões sobre o conflito do Oriente Médio. Eles sabem que eu sou um barco heterodoxo no naufrágio do pensamento único que reina em meu país, sobre Israel. Eles querem me escutar. Alguém razoável como eu, dizem, por que se arrisca a perder a credibilidade defendendo os maus, os culpados? Eu lhes falo que a verdade é um espelho quebrado e que todos nós temos algum fragmento. E eu
provoco sua reação: "todos vocês se sentem especialistas em política internacional, quando se fala de Israel, mas na realidade não sabem nada. Será que se atreveriam a falar do conflito de Ruanda, da Caxemira, da Chechenia?"
Não. São juristas, sua área de atuação não é a geopolítica. Mas com Israel se atrevem a dar opiniões. Todo mundo se atreve. Por quê? Porque Israel está sob a lupa midiática permanente e sua imagem distorcida contamina os cérebros do mundo. E, porque faz parte da coisa politicamente correta, porque parece solidariedade humana, porque é grátis falar contra Israel. E, deste modo, pessoas cultas, quando lêem sobre Israel, estão dispostas a
acreditar que os judeus têm seis braços;, como na Idade Média, elas acreditam em todo tipo de barbaridades. Sobre os judeus do passado e os israelenses de hoje, vale tudo.
A primeira pergunta é, portanto, por que tanta gente inteligente, quando fala sobre Israel, se torna idiota. O problema que temos, nós que não demonizamos Israel, é que não existe debate sobre o conflito, existe rótulo; não se trocam ideias, adere-se a slogans; não desfrutamos de informações sérias, nós sofremos de jornalismo tipo hambúrguer, fast food,
cheio de preconceitos, propaganda e simplismo. O pensamento intelectual e o jornalismo internacional renunciaram a Israel. Não existem. É por isso que, quando se tenta ir mais além do pensamento único, passa-se a ser o suspeito, o não solidário e o reacionário, e o
imediatamente segregado. Por quê? Eu tento responder a esta pergunta há anos: por quê?
Por que de todos os conflitos do mundo, só este interessa? Por que se criminaliza um pequeno país, que luta por sua sobrevivência? Por que triunfa a mentira e a manipulação informativa, com tanta facilidade? Por que tudo é reduzido a uma simples massa de imperialistas assassinos? Por que as razões de Israel nunca existem? Por que as culpas palestinas nunca existem? Por que Arafat é um herói e Sharon um monstro? Em definitivo, por que, sendo o único país do mundo ameaçado com a destruição é o único que ninguém considera como vítima?
Eu não acredito que exista uma única resposta a estas perguntas. Da mesma forma que é impossível explicar a maldade histórica do antissemitismo completamente, também não é possível explicar a imbecilidade atual do preconceito anti-Israel. Ambos bebem das fontes da intolerância, da mentira e do preconceito. Se, além disso, nós aceitarmos que ser anti-Israel é a nova forma de ser antissemita, concluímos que mudaram as circunstâncias, mas se mantiveram intactos os mitos mais profundos, tanto do antissemitismo
cristão medieval, como do antissemitismo político moderno. E esses mitos desembocam no que se fala sobre Israel. Por exemplo, o judeu medieval que matava as crianças cristãs para beber seu sangue, se conecta diretamente com o judeu israelense que mata as crianças palestinas para ficar com suas terras. Sempre são crianças inocentes e judeus de intenções obscuras.
Por exemplo, a ideia de que os banqueiros judeus queriam dominar o mundo através dos bancos europeus, de acordo com o mito dos Protocolos (dos Sábios de Sião), conecta-se diretamente com a ideia de que os judeus de Wall Street dominam o mundo através da Casa Branca. O domínio da imprensa, o domínio das finanças, a conspiração universal, tudo aquilo que se configurou no ódio histórico aos judeus, desemboca hoje no ódio aos
israelenses. No subconsciente, portanto, fala o DNA antissemita ocidental, que cria um eficaz caldo de cultura. Mas, o que fala o consciente? Por que hoje surge com tanta virulência uma intolerância renovada, agora centrada, não no povo judeu, mas no estado judeu? Do meu ponto de vista, há motivos históricos e geopolíticos, entre eles o sangrento papel soviético durante décadas, os interesses árabes, o antiamericanismo europeu, a dependência energética do Ocidente e o crescente fenômeno islâmico.
Mas também surge de um conjunto de derrotas que nós sofremos como sociedades livres e que desemboca em um forte relativismo ético. Derrota moral da esquerda. Durante décadas, a esquerda ergueu a bandeira da liberdade, onde houvesse injustiça, e foi a depositária das esperanças utópicas da sociedade. Foi a grande construtora do futuro. Apesar da maldade assassina do stalinismo ter afundado essas utopias e ter deixado a
esquerda como o rei que estava nu, despojado de trajes, ela conservou intacta sua auréola  de lutadora, e ainda dita as regras do que é bom e ruim no mundo. Até mesmo aqueles que nunca votariam em posições de esquerda, concedem um grande prestígio aos intelectuais de esquerda e permitem que sejam eles os que monopolizam o conceito de solidariedade. Como fizeram sempre. Deste modo, os que lutavam contra Pinochet, eram os lutadores pela
liberdade, mas as vítimas de Castro são expulsas do paraíso dos heróis e transformadas em agentes da CIA, ou em fascistas disfarçados. Da mesma forma que é impossível explicar a maldade histórica do antissemitismo completamente, também não é possível explicar a imbecilidade atual do preconceito anti-Israel. Ambos bebem das fontes da intolerância, da mentira e do preconceito.
Eu me lembro, perfeitamente, como, quando era jovem, na Universidade combativa da Espanha de Franco, ler Solzhenitsyn era um horror! E deste modo, o homem que começou a gritar contra o buraco negro do Gulag stalinista, não pôde ser lido pelos lutadores antifranquistas, porque não existiam as ditaduras de esquerda, nem as vítimas que as combatiam.
Essa traição histórica da liberdade se reproduz no momento atual, com precisão matemática. Também hoje, como ontem, essa esquerda perdoa ideologias totalitárias, se apaixona por ditadores e, em sua ofensiva contra Israel, ignora a destruição de direitos fundamentais. Odeia os rabinos, mas se apaixona pelos imãs; grita contra o Tzahal (Exército
israelense), mas aplaude os terroristas do Hamas; chora pelas vítimas palestinas, mas rejeita as vítimas judias; e, quando se comove pelas crianças palestinas, só o faz se puder acusar os israelenses. Nunca denunciará a cultura do ódio, ou sua preparação para a morte, ou a escravidão que suas mães sofrem. E enquanto iça a bandeira da Palestina, queima a bandeira de Israel.
Um ano atrás, eu fiz as seguintes perguntas no Congresso do AIPAC (Comitê de Assuntos Públicos EUA-Israel) em Washington: "Que profundas patologias alijam a esquerda de seu compromisso moral? Por que nós não vemos manifestações em Paris, ou em Barcelona, contra as ditaduras islâmicas? Por que não há manifestações contra a escravidão de milhões de mulheres muçulmanas? Por que eles não se manifestam contra o uso de crianças-bomba, nos conflitos onde o Islã está envolvido? Por que a esquerda só está obcecada em lutar contra duas das democracias mais sólidas do planeta, e as que sofreram os ataques mais sangrentos, os Estados Unidos e Israel?"
Porque a esquerda, que sonhou utopias, parou de sonhar, quebrada no muro de Berlim do seu próprio fracasso. Já não tem ideias, e sim slogans. Já não defende direitos, mas preconceitos. E o preconceito maior de todos é o que tem contra Israel. Eu acuso, portanto, de forma clara: a principal responsabilidade pelo novo ódio antissemita, disfarçada de posições anti-Israel, provém desses que deveriam defender a liberdade, a solidariedade e o progresso. Longe disto, eles defendem os déspotas, esquecem suas vítimas e permanecem calados perante as ideologias medievais que querem destruir a civilização. A traição da esquerda é uma autêntica traição à modernidade.
Derrota do jornalismo. Temos um mundo mais informado do que nunca, mas nós não temos um mundo melhor informado. Pelo contrário, os caminhos da informação mundial nos conectam com qualquer ponto do planeta, mas eles não nos conectam nem com a verdade, nem com os fatos. Os jornalistas atuais não precisam de mapas, porque têm o Google Earth, eles não precisam saber história, porque têm a Wikipedia. Os jornalistas históricos que conheciam as raízes de um conflito, ainda existem, mas são espécies em extinção,
devorados por este jornalismo tipo hambúrguer, que oferece fast food de notícias, para leitores que querem fast food de informação.
Israel é o lugar mais vigiado do mundo e, ainda assim, o lugar menos compreendido do mundo. Claro que, também influencia a pressão dos grandes lobbys dos petrodólares, cuja influência no jornalismo é sutil, mas profunda. Qualquer mídia sabe que se falar contra Israel não terá problemas. Mas, o que acontecerá se criticar um país islâmico? Sem dúvida, então, sua vida ficará complicada. Não nos confundamos. Parte da imprensa, que escreve contra Israel, se veria refletida na frase afiada de Goethe: "Ninguém é mais escravo do que aquele que se acha livre, sem sê-lo". Ou também em outra, mais cínica de Mark Twain: "Conheça primeiro os fatos e logo os distorça quanto quiser" .
Derrota do pensamento crítico. A tudo isto, é necessário somar o relativismo ético, que define o momento atual, e que é baseado, não na negação dos valores da civilização, mas na sua banalização. O que é a modernidade? Pessoalmente a explico com este pequeno relato: se eu me perdesse em uma ilha deserta, e quisesse voltar a fundar uma sociedade democrática, só necessitaria de três livros: as Tábuas da Lei, que estabeleceram o primeiro
código de comportamento da modernidade. "O não matarás, não roubarás", fundou a civilização moderna. O código penal romano. E a Declaração dos Direitos Humanos. E com estes três textos, começaríamos novamente. Estes princípios que nos endossam como sociedade, são relativizados, até mesmo por aqueles que dizem defendê-los. "Não matarás", depende de quem seja o objeto, pensam aqueles que, por exemplo, em Barcelona, se manifestam aos gritos a favor do Hamas.
"Vivam os direitos humanos" , depende de a quem se aplica, e por isso milhões de mulheres escravas não preocupam. "Não mentirás" , depende se a informação for uma arma de guerra a favor de uma causa. A massa crítica social se afinou e, ao mesmo tempo, o dogmatismo ideológico engordou. Nesta dupla mudança de direção, os fortes valores da modernidade foram substituídos por um pensamento fraco, vulnerável à manipulação e ao
maniqueísmo.
Derrota da ONU. E com ela, uma firme derrota dos organismos internacionais, que deveriam cuidar dos direitos humanos, e que se tornaram bonecos destroçados nas mãos de déspotas. A ONU só serve para que islamofascistas, como Ahmadinejad, ou demagogos perigosos, como Hugo Chávez, tenham um palco planetário de onde cuspir seu ódio. E, claro, para atacar Israel sistematicamente. A ONU, também, vive melhor contra Israel.
Finalmente, derrota do Islã. O Islã das luzes sofre hoje o ataque violento de um vírus totalitário, que tenta frear seu desenvolvimento ético. Este vírus usa o nome de Deus para perpetrar os horrores mais inimagináveis: apedrejar mulheres, escravizá-las, usar grávidas e jovens com atraso mental como bombas humanas, educar para o ódio e declarar guerra à liberdade. Não esqueçamos, por exemplo, que nos matam com celulares conectados, via
satélite, com a Idade Média. Se o stalinismo destruiu a esquerda, e o nazismo destruiu a Europa, o fundamentalismo islâmico está destruindo o Islã. E também tem, como as outras ideologias totalitárias, um DNA antissemita. Talvez o antissemitismo islâmico seja o fenômeno intolerante mais sério da atualidade, e não em vão afeta mais de 1,3 bilhões de pessoas educadas, maciçamente, no ódio ao judeu.
Na encruzilhada destas derrotas, se encontra Israel. Órfão de uma esquerda razoável, órfão de um jornalismo sério e de uma ONU digna, e órfão de um Islã tolerante, o Estado de Israel sofre com o paradigma violento do século XI: a falta de compromisso sólido com os valores da liberdade. Nada é estranho. A cultura judaica encarna, como nenhuma outra, a metáfora de um conceito de civilização que hoje sofre ataques por todos os flancos. Vocês são o termômetro da saúde do mundo. Sempre que o mundo teve febre totalitária, vocês sofreram. Na Idade Média, no fascismo europeu, no fundamentalismo islâmico. Sempre, o primeiro inimigo do e da confusão social, Israel encarna, na própria carne, o judeu de sempre.
Um pária de nação entre as nações, para um povo pária entre os povos. É por isso que o antissemitismo do século XXI foi vestido com o disfarce efetivo da crítica anti-Israel. Toda crítica contra Israel é antissemita? Não. Mas, todo o antissemitismo atual transformou- se no preconceito e na demonização contra o Estado Judeu. Um vestido novo para um ódio antigo.
Benjamim Franklin disse: "Onde mora a liberdade, lá é a minha pátria". E Albert Einstein acrescentou: "A vida é muito perigosa. Não pelas pessoas que fazem o mal, mas por aquelas que ficam sentadas vendo isso acontecer" .
Este é o duplo compromisso aqui e hoje: nunca se sentar vendo o mal passar e defender sempre as pátrias da liberdade.
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*Pilar Rahola I. Martínez* Nasceu em 21/10/1958 é jornalista e escritora catalã, com formação política e MP. Estudou Espanhol e Filosofia Catalã na Universidade de Barcelona. Possui vários livros e artigos publicados,
palestrante internacional requisitada pela mídia e universidades, é colunista do La Vanguardia, na Espanha; La Nacion, na Argentina e do Diário da América, nos Estados Unidos.
De 1987 a 1990 Rahola cobriu a Guerra na Etiópia, Guerra dos Balcãs, Guerra do Golfo e a Queda do Muro de Berlim como diretora da publicação Pòrtic. Suas áreas de atuação incluem Direito das Mulheres, Direito Humano Internacional, e Defesa dos Animais. Nos últimos anos tem exposto seu ponto de vista sobre Israel e o Sionismo.
Entre diversos prêmios recebidos: Doutor Causa Honoris na Universidade de Artes e Ciência da Comunicação, em Santiago do Chile (2004), pela sua luta em favor dos direitos humanos; Prêmio Javer Shalom, pela comunidade judaica chilena pela sua luta contra o antisemitismo; Cicla Price (2005), pelo mesmo motivo; Membro de Honra da Universidade de Tel Aviv (2006); Golden Menora entregue pela Bnai Brith francesa (2006); Laureada com o priemio Scopus pela Universidade Hebraica de Jerusalém (2007); participou como convidada de honra em diversas ocasiões, entre elas no AIPAC de Conferência Política (2008); em 2009 recebeu prêmio da Federação das Comunidades Judias da Espanha, Senador Angel Pulido e Prêmio Mídia de Massa pelo Comitê Judaico Americano pela luta pelos Direitos Humanos; A Liga Anti Difamação lhe concedeu o prêmio Daniel Pearl "pela sua dedicação e comprometimento a um jornalismo honesto e responsável baseado em um código de ética e por falar honestamente ao público"; recebeu o prêmio Morris Abram entregue pela UN pela sua defesa aos Direitos Humanos, Genebra, 2011, entre outros.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Conselho de Segurança da ONU

TREM DA HISTÓRIA

Mesmo pouco conhecida, Brasil teve participação e sua cota de sacrifício na Segunda Guerra Mundial. / Reprodução
Quando, em 1995, escrevi que estávamos assistindo ao término da Segunda Guerra Mundial (Os Pilares da Discórdia), a reverberação da Queda do Muro de Berlim ainda arrebatava os corações e mentes de quem buscava compreender a nova era mundial.

Se foi "estimulante ver um autor de formação militar mover-se com desembaraço no grande cenário do mundo despolarizado, economicamente mais aberto, em rápida transformação, social e política", nas palavras com que Roberto Campos me honrou no prefácio ao livro, muito mais importante é encontrar hoje, no "legado de um verdadeiro grande pensador", o último livro de Tony Judt (Pensando o Século XX), o juízo de que a Segunda Guerra Mundial está terminada, "tendo durado cerca de cinco décadas".

Distintamente das comemorações anteriores do desembarque aliado na Normandia em 6 de junho de 1944 – o começo do fim da Alemanha nazista –neste ano foram os europeus, e não os norte-americanos, os anfitriões evidentes da festa do 70º aniversário do Dia D.

Se a Europa tem bons motivos para celebrar a vitória contra Hitler e o encontro com si mesma, pode parecer surpreendente que o Brasil viesse a ter nesses festejos uma discreta relevância: História não nos falta, ainda que praticamente desconhecida de nós mesmos.

Em setembro de 1944, há setenta anos, a Força Expedicionária Brasileira entrou em combate na Itália, uma frente de luta difícil, que os desembarques aliados na França relegaram abruptamente ao plano secundário, onde, no entanto, os brasileiros ofereceram sua cota de sangue e sacrifício para fixar os alemães (Monte Castelo, entre novembro de 1944 a fevereiro de 1945); brilharam na ofensiva de primavera (Montese, 14 de abril de 1945); e, contrariando o script que lhes parecia reservado, capturaram uma divisão alemã (Collecchio-Fornovo, 27 a 30 de abril de 1945), o "magnífico final de uma atuação magnífica", nas palavras de Mark Clark, o comandante aliado na Itália.

Mas neste Brasil de precárias instituições, onde a histórica desconfiança entre políticos e militares é hoje alimentada por ideologia, não existe espaço para qualquer comemoração que situe o País como ator relevante no cenário internacional. Ao contrário, equívocos da politica externa brasileira se incumbiram de nos tornar irrelevantes.

A lista é grande, e não vale a pena retornar aqui ao relato deprimente dos episódios que conduziram ao rebaixamento do Brasil por conta de nosso flerte com o autoritarismo e totalitarismo. Nos termos de Timothy Snyder, o parceiro de Tony Judt nesse seu último livro, há "uma certa lição metafísica ou pelo menos metapolítica" derivada da Segunda Guerra Mundial e ela se aplica indistintamente aos países, isoladamente ou nas suas relações com os demais.

Quando tratamos do pensamento e da imagem de um país – algo que não se aplica somente à Alemanha – não podemos nos esquecer do como e por quê um certo cabo Adolfo assumiu o poder total da nação mais culta e o comando absoluto do melhor exército, arrastando-os à guerra e ao desastre apocalíptico, ao fim e ao cabo do que não houve intocados e inocentes.

Já ao pensarmos sobre as relações internacionais, a lição da Segunda Guerra Mundial fica mais evidente quando a vincularmos ao conflito que lhe antecedeu e deu origem, a Primeira Guerra Mundial, resumindo-se o saldo desses cem anos no direito dos povos viverem em liberdade dentro de suas fronteiras e em paz com seus vizinhos.

Mas o sentido metafísico e metapolítico dessa lição da Guerra dos Trinta Anos da Idade Contemporânea (1914-1945) se completa na condenação dos três grandes males do século 20: o nazi-fascismo, o Holocausto e o comunismo. Juntos, foram responsáveis pela maior perda de vidas humanas e destruição já conhecidas na História.

Separados, cada um deles levou o homem a cometer os crimes mais abomináveis da História, e o pior, à luz das leis que o totalitarismo criou. O consenso em torno dessa lição deixada é o grande ponto de corte da História moderna.

De todos os países da América do Sul, apenas o Brasil, há setenta anos, ousou romper a inércia da irrelevância, para convergir na causa da liberdade dos povos e da democracia. Esse momento foi simplesmente o ponto de inflexão da história do país no século passado. No campo da defesa, além de combater na Europa, o Brasil assumiu o papel geopolítico que lhe cabia, patrulhando a sua costa e escoltando milhares de navios no setor de sua responsabilidade no Atlântico Sul, emergindo do conflito com a supremacia militar que conduziria ao progressivo esvaziamento de antigas tensões militares regionais.

Consumo, estradas, base industrial, urbanização, energia e interiorização dos polos geoeconômicos, particularmente a capital federal, foram o resultado da participação do Brasil na Segunda Guerra, implementados ao longo dos nossos "trenteglorieux", a referência francesa ao período de 1950 a 1980, no qual aconteceram grandes progressos sociais e econômicos.

Para além das nossas fronteiras, o mesmo não aconteceu. Perderam-se oportunidades e insistiu-se nos equívocos do corporativismo e do militarismo, o que terminou levando à insustentabilidade política e econômica da região, cuja última versão tem nome: bolivarianismo.

Para o Brasil, o saldo desses setenta anos é a constatação de que, se não aproveitamos todas as oportunidades que se nos ofereceram, pelo menos, até aqui, não abandonamos as grandes linhas da evolução da História nesse período: democracia e desenvolvimento.

O que não está claro e se constitui em motivo de preocupação é o apagamento dessa memória no estágio atual do pensamento brasileiro, que vai se acomodando na favelização, deseducação e violência, as expressões mais evidentes do esgarçamento do tecido social resultante do não desenvolvimento que acumulamos há décadas.

Se o Brasil se der conta do que está lhe acontecendo, 2014 pode vir a ser uma boa estação para pensar a História, antes de embarcarmos no trem errado, como aconteceu a outros.



Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador