Mesmo pouco conhecida, Brasil teve participação e sua cota de sacrifício na
Segunda Guerra Mundial. / Reprodução
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Quando, em 1995, escrevi que estávamos assistindo ao término da
Segunda Guerra Mundial (Os Pilares da Discórdia), a reverberação da Queda do
Muro de Berlim ainda arrebatava os corações e mentes de quem buscava compreender
a nova era mundial.
Se foi "estimulante ver um autor de formação militar mover-se com desembaraço no grande cenário do mundo despolarizado, economicamente mais aberto, em rápida transformação, social e política", nas palavras com que Roberto Campos me honrou no prefácio ao livro, muito mais importante é encontrar hoje, no "legado de um verdadeiro grande pensador", o último livro de Tony Judt (Pensando o Século XX), o juízo de que a Segunda Guerra Mundial está terminada, "tendo durado cerca de cinco décadas".
Distintamente das comemorações anteriores do desembarque aliado na Normandia em 6 de junho de 1944 – o começo do fim da Alemanha nazista –neste ano foram os europeus, e não os norte-americanos, os anfitriões evidentes da festa do 70º aniversário do Dia D.
Se a Europa tem bons motivos para celebrar a vitória contra Hitler e o encontro com si mesma, pode parecer surpreendente que o Brasil viesse a ter nesses festejos uma discreta relevância: História não nos falta, ainda que praticamente desconhecida de nós mesmos.
Em setembro de 1944, há setenta anos, a Força Expedicionária Brasileira entrou em combate na Itália, uma frente de luta difícil, que os desembarques aliados na França relegaram abruptamente ao plano secundário, onde, no entanto, os brasileiros ofereceram sua cota de sangue e sacrifício para fixar os alemães (Monte Castelo, entre novembro de 1944 a fevereiro de 1945); brilharam na ofensiva de primavera (Montese, 14 de abril de 1945); e, contrariando o script que lhes parecia reservado, capturaram uma divisão alemã (Collecchio-Fornovo, 27 a 30 de abril de 1945), o "magnífico final de uma atuação magnífica", nas palavras de Mark Clark, o comandante aliado na Itália.
Mas neste Brasil de precárias instituições, onde a histórica desconfiança entre políticos e militares é hoje alimentada por ideologia, não existe espaço para qualquer comemoração que situe o País como ator relevante no cenário internacional. Ao contrário, equívocos da politica externa brasileira se incumbiram de nos tornar irrelevantes.
A lista é grande, e não vale a pena retornar aqui ao relato deprimente dos episódios que conduziram ao rebaixamento do Brasil por conta de nosso flerte com o autoritarismo e totalitarismo. Nos termos de Timothy Snyder, o parceiro de Tony Judt nesse seu último livro, há "uma certa lição metafísica ou pelo menos metapolítica" derivada da Segunda Guerra Mundial e ela se aplica indistintamente aos países, isoladamente ou nas suas relações com os demais.
Quando tratamos do pensamento e da imagem de um país – algo que não se aplica somente à Alemanha – não podemos nos esquecer do como e por quê um certo cabo Adolfo assumiu o poder total da nação mais culta e o comando absoluto do melhor exército, arrastando-os à guerra e ao desastre apocalíptico, ao fim e ao cabo do que não houve intocados e inocentes.
Já ao pensarmos sobre as relações internacionais, a lição da Segunda Guerra Mundial fica mais evidente quando a vincularmos ao conflito que lhe antecedeu e deu origem, a Primeira Guerra Mundial, resumindo-se o saldo desses cem anos no direito dos povos viverem em liberdade dentro de suas fronteiras e em paz com seus vizinhos.
Mas o sentido metafísico e metapolítico dessa lição da Guerra dos Trinta Anos da Idade Contemporânea (1914-1945) se completa na condenação dos três grandes males do século 20: o nazi-fascismo, o Holocausto e o comunismo. Juntos, foram responsáveis pela maior perda de vidas humanas e destruição já conhecidas na História.
Separados, cada um deles levou o homem a cometer os crimes mais abomináveis da História, e o pior, à luz das leis que o totalitarismo criou. O consenso em torno dessa lição deixada é o grande ponto de corte da História moderna.
De todos os países da América do Sul, apenas o Brasil, há setenta anos, ousou romper a inércia da irrelevância, para convergir na causa da liberdade dos povos e da democracia. Esse momento foi simplesmente o ponto de inflexão da história do país no século passado. No campo da defesa, além de combater na Europa, o Brasil assumiu o papel geopolítico que lhe cabia, patrulhando a sua costa e escoltando milhares de navios no setor de sua responsabilidade no Atlântico Sul, emergindo do conflito com a supremacia militar que conduziria ao progressivo esvaziamento de antigas tensões militares regionais.
Consumo, estradas, base industrial, urbanização, energia e interiorização dos polos geoeconômicos, particularmente a capital federal, foram o resultado da participação do Brasil na Segunda Guerra, implementados ao longo dos nossos "trenteglorieux", a referência francesa ao período de 1950 a 1980, no qual aconteceram grandes progressos sociais e econômicos.
Para além das nossas fronteiras, o mesmo não aconteceu. Perderam-se oportunidades e insistiu-se nos equívocos do corporativismo e do militarismo, o que terminou levando à insustentabilidade política e econômica da região, cuja última versão tem nome: bolivarianismo.
Para o Brasil, o saldo desses setenta anos é a constatação de que, se não aproveitamos todas as oportunidades que se nos ofereceram, pelo menos, até aqui, não abandonamos as grandes linhas da evolução da História nesse período: democracia e desenvolvimento.
O que não está claro e se constitui em motivo de preocupação é o apagamento dessa memória no estágio atual do pensamento brasileiro, que vai se acomodando na favelização, deseducação e violência, as expressões mais evidentes do esgarçamento do tecido social resultante do não desenvolvimento que acumulamos há décadas.
Se o Brasil se der conta do que está lhe acontecendo, 2014 pode vir a ser uma boa estação para pensar a História, antes de embarcarmos no trem errado, como aconteceu a outros.
Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador
Se foi "estimulante ver um autor de formação militar mover-se com desembaraço no grande cenário do mundo despolarizado, economicamente mais aberto, em rápida transformação, social e política", nas palavras com que Roberto Campos me honrou no prefácio ao livro, muito mais importante é encontrar hoje, no "legado de um verdadeiro grande pensador", o último livro de Tony Judt (Pensando o Século XX), o juízo de que a Segunda Guerra Mundial está terminada, "tendo durado cerca de cinco décadas".
Distintamente das comemorações anteriores do desembarque aliado na Normandia em 6 de junho de 1944 – o começo do fim da Alemanha nazista –neste ano foram os europeus, e não os norte-americanos, os anfitriões evidentes da festa do 70º aniversário do Dia D.
Se a Europa tem bons motivos para celebrar a vitória contra Hitler e o encontro com si mesma, pode parecer surpreendente que o Brasil viesse a ter nesses festejos uma discreta relevância: História não nos falta, ainda que praticamente desconhecida de nós mesmos.
Em setembro de 1944, há setenta anos, a Força Expedicionária Brasileira entrou em combate na Itália, uma frente de luta difícil, que os desembarques aliados na França relegaram abruptamente ao plano secundário, onde, no entanto, os brasileiros ofereceram sua cota de sangue e sacrifício para fixar os alemães (Monte Castelo, entre novembro de 1944 a fevereiro de 1945); brilharam na ofensiva de primavera (Montese, 14 de abril de 1945); e, contrariando o script que lhes parecia reservado, capturaram uma divisão alemã (Collecchio-Fornovo, 27 a 30 de abril de 1945), o "magnífico final de uma atuação magnífica", nas palavras de Mark Clark, o comandante aliado na Itália.
Mas neste Brasil de precárias instituições, onde a histórica desconfiança entre políticos e militares é hoje alimentada por ideologia, não existe espaço para qualquer comemoração que situe o País como ator relevante no cenário internacional. Ao contrário, equívocos da politica externa brasileira se incumbiram de nos tornar irrelevantes.
A lista é grande, e não vale a pena retornar aqui ao relato deprimente dos episódios que conduziram ao rebaixamento do Brasil por conta de nosso flerte com o autoritarismo e totalitarismo. Nos termos de Timothy Snyder, o parceiro de Tony Judt nesse seu último livro, há "uma certa lição metafísica ou pelo menos metapolítica" derivada da Segunda Guerra Mundial e ela se aplica indistintamente aos países, isoladamente ou nas suas relações com os demais.
Quando tratamos do pensamento e da imagem de um país – algo que não se aplica somente à Alemanha – não podemos nos esquecer do como e por quê um certo cabo Adolfo assumiu o poder total da nação mais culta e o comando absoluto do melhor exército, arrastando-os à guerra e ao desastre apocalíptico, ao fim e ao cabo do que não houve intocados e inocentes.
Já ao pensarmos sobre as relações internacionais, a lição da Segunda Guerra Mundial fica mais evidente quando a vincularmos ao conflito que lhe antecedeu e deu origem, a Primeira Guerra Mundial, resumindo-se o saldo desses cem anos no direito dos povos viverem em liberdade dentro de suas fronteiras e em paz com seus vizinhos.
Mas o sentido metafísico e metapolítico dessa lição da Guerra dos Trinta Anos da Idade Contemporânea (1914-1945) se completa na condenação dos três grandes males do século 20: o nazi-fascismo, o Holocausto e o comunismo. Juntos, foram responsáveis pela maior perda de vidas humanas e destruição já conhecidas na História.
Separados, cada um deles levou o homem a cometer os crimes mais abomináveis da História, e o pior, à luz das leis que o totalitarismo criou. O consenso em torno dessa lição deixada é o grande ponto de corte da História moderna.
De todos os países da América do Sul, apenas o Brasil, há setenta anos, ousou romper a inércia da irrelevância, para convergir na causa da liberdade dos povos e da democracia. Esse momento foi simplesmente o ponto de inflexão da história do país no século passado. No campo da defesa, além de combater na Europa, o Brasil assumiu o papel geopolítico que lhe cabia, patrulhando a sua costa e escoltando milhares de navios no setor de sua responsabilidade no Atlântico Sul, emergindo do conflito com a supremacia militar que conduziria ao progressivo esvaziamento de antigas tensões militares regionais.
Consumo, estradas, base industrial, urbanização, energia e interiorização dos polos geoeconômicos, particularmente a capital federal, foram o resultado da participação do Brasil na Segunda Guerra, implementados ao longo dos nossos "trenteglorieux", a referência francesa ao período de 1950 a 1980, no qual aconteceram grandes progressos sociais e econômicos.
Para além das nossas fronteiras, o mesmo não aconteceu. Perderam-se oportunidades e insistiu-se nos equívocos do corporativismo e do militarismo, o que terminou levando à insustentabilidade política e econômica da região, cuja última versão tem nome: bolivarianismo.
Para o Brasil, o saldo desses setenta anos é a constatação de que, se não aproveitamos todas as oportunidades que se nos ofereceram, pelo menos, até aqui, não abandonamos as grandes linhas da evolução da História nesse período: democracia e desenvolvimento.
O que não está claro e se constitui em motivo de preocupação é o apagamento dessa memória no estágio atual do pensamento brasileiro, que vai se acomodando na favelização, deseducação e violência, as expressões mais evidentes do esgarçamento do tecido social resultante do não desenvolvimento que acumulamos há décadas.
Se o Brasil se der conta do que está lhe acontecendo, 2014 pode vir a ser uma boa estação para pensar a História, antes de embarcarmos no trem errado, como aconteceu a outros.
Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador
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