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domingo, 28 de setembro de 2014

Sem limites

                                                                                                                                                                                                                                                                         
                                                                                                                                            * Sérgio Paulo Muniz Costa


A publicação em 25 de setembro pelo jornal O Globo do editorial “Limites da Comissão Nacional da Verdade”, enseja reflexões quanto à postura da imprensa em relação a temas sensíveis e polêmicos, como as violações de direitos humanos acontecidas no decorrer da luta revolucionária armada durante os anos 60 e 70 no Brasil. É notório que a grande imprensa não vem dispensando o mesmo espaço e tratamento às opiniões antagônicas sobre essa questão, algo que diz respeito não apenas a militares ou guerrilheiros, mas à sociedade como um todo, e nesse contexto o editorial de O Globo renova as preocupações quanto ao presente e ao futuro de uma imprensa livre no país, aspecto crucial para a sobrevivência da democracia no Brasil.
Um ministro da propaganda disse em certa ocasião a donos de jornais e outros representantes do setor que “a excelente imprensa nacional precisava enxergar uma situação ideal no fato de ela ser na mão do governo uma espécie de piano que o governo pode tocar”1. Como no Brasil de hoje ninguém ousa desmentir a existência de um “Ministério da Propaganda“ espraiado nos meandros da República e muito bem instalado no Palácio do Planalto, é lícito perguntar se o governo está ou não tocando o piano da imprensa. Aparentando uma postura equânime, no estilo “uma no cravo e outra na ferradura“, o editorial de o Globo omite, erra e distorce na forma e no conteúdo, inapropriada e desequilibrado respectivamente, considerando-­‐se que se trata de um jornal dessa tradição e importância.
Omite, ao não apontar que é o próprio governo que intenta alterar a Lei da Anistia, o mesmo governo que constitui de forma sectária em sua Casa Civil uma comissão ideológica; que não desautoriza qualquer das declarações de membros dessa comissão naquele sentido e que consente a alteração do escopo de seus trabalhos à revelia da lei aprovada pelo Congresso Nacional, o qual, mais uma vez, aceita ser enganado e desautorizado.
Erra, grosseiramente, ao atribuir a origem da questão a “conflitos entre o poder político e as Forças Armadas de quatro, cinco décadas atrás” e a propor “identificar responsáveis” fora da esfera judicial. É extremamente preocupante assistir um jornal da importância de O Globo assumir em matéria editorial erros tão crassos. O primeiro, por desconsiderar fatos para acolher interpretações radicais. Ora, se está em julgamento o Movimento de 31 de Março de 1964, cabe lembrar aos historiadores que o Globo consultou (dos quais não necessitaria se compulsasse seus próprios arquivos) que ele se originou de um conflito no poder político e que foi esse poder que deu posse a um presidente eleito pelo Congresso. Se está em julgamento a ação repressiva do Estado contra a guerrilha, cabe lembrar que as forças armadas e polícias defendiam o poder político que as organizações radicais de esquerda queriam derrubar. No segundo caso, quanto à responsabilização, como os juristas de fancaria pretendem “identificar responsáveis sem fins judiciais, até por um dever humanitário do Estado para com as famílias”? Com as inquirições unilaterais, escrachos e depredações que alegremente destroem reputações e carreiras sem qualquer compromisso com a Justiça e o Direito? Que famílias? De algumas ou de todas atingidas indiscriminadamente pela violência?
Distorce, ao lembrar, parcialmente as vítimas militares do terrorismo de esquerda, quando deveriam ser identificadas, e muito bem lembradas, as não poucas vítimas civis de uma violência que está longe de ser condenada no Brasil. Distorce o sentido da palavra “atuar”, que no léxico dos radicais homiziados na estrutura governamental significa punir e calar quem quer que se manifeste contra o arbítrio e possa ser menosprezado pelos príncipes da verdade como um não cidadão, incapaz de exercer seu direito de opinião. Quanto a esse aspecto, repito aqui um comentário que recebi quando da divulgação do malfadado editorial: "Quando os radicais falam e escrevem, o Globo publica e bate palmas. Quando um general da reserva fala, é “arroubo” que deve ser contido pelos comandantes para se manter a serenidade". Assim, na falta de argumentos, nega-­‐se espaço à opinião contrária e volta-­‐se à velha prática da ameaça, pouco importa que ela seja absolutamente ilegal.
Para enorme azar de O Globo, na mesma data em que publicou seu desastrado editorial, repercutiram as desastradas declarações da presidente da República na oportunidade da Abertura da Assembleia-­‐Geral da ONU, com as quais ela condenou as medidas da comunidade internacional contra o novo surto de terrorismo islâmico no Oriente Médio. Confirmou-­‐se aquilo que se esconde há algum tempo no país: um governo controlado por pessoas que nunca se sentiram obrigadas a pedir desculpas pelos atos de terrorismo que cometeram em seu país será sempre incapaz de se posicionar com clareza em relação ao terrorismo internacional. Não só pela surpreendente falta de legislação pertinente, mas agora também por meio de declarações inoportunas e mal direcionadas de sua presidente em tribunas internacionais, o Brasil vai se posicionando erroneamente no cenário mundial. Oxalá, isso não traga consequências graves para os brasileiros.
A questão é, portanto, outra: o Estado somos nós, a sociedade politicamente organizada, sobre a qual recairão as consequências dos erros cometidos por aqueles transitoriamente incumbidos de nos representar e governar. Tratemos pois de enfrentar os erros de nossa sociedade e não os facilmente atribuíveis ao Estado, essa entidade misteriosa, com fundos infindáveis e culpas infinitas, em cujo remanso se expiam tantos fracassos e omissões. Tratemos de enfrentar o erro da violência política do marxismo que derrotado nas suas expressões guerrilheiras urbana e rural há mais de quarenta anos está aí renascido e travestido como movimentos anárquicos que ameaçam a paz social. Tratemos de enfrentar a fraqueza de uma imprensa dita forte que se dobra aos interesses cartoriais, desinformando e confundindo a sociedade como serviçal volúvel do momento político. Tratemos de enfrentar a soberba dos poderosos que se julgam acima do bem e do mal, senhores do monopólio da verdade com que pretendem ignorar e fazer ignorar as discordâncias que devem existir em qualquer sociedade democrática. Foram fraquezas como essas que, não enfrentadas, acumularam-­‐se até o ponto da ruptura em outras épocas de nossa História, custando caro ao País e à sua evolução social e política.
Não se reconhece aqui neste texto qualquer inferioridade cedida por se dar resposta a mais uma iniciativa despropositada que ocupou as manchetes durante dois dias e, particularmente, a um editorial que, se pretendia corrigir algum excesso, acabou por cometer outros piores. Resgatam-­‐se, ou pelo menos tenta-­‐se resgatar, os saudáveis hábitos do debate, dissenso e apreciação de perspectivas distintas. De antemão, repudia-­‐se qualquer tentativa de classificar este texto de cerceador ou constrangedor da imprensa: quem o assim enxergar está tentando fugir ao debate, para o qual o autor deste texto permanece à disposição.
Estranha-­-se sim que em momento tão sensível, às vésperas de eleições cruciais para o País, tenha brotado de um gabinete ministerial, justamente o da Defesa, em evidente sincronia com a Comissão Nacional da Verdade, uma notícia tão perturbadora, carimbada pelo governo, divulgada e reiterada com tanto destaque. Instalou-­‐se uma crise, sem dúvida. É o ressurgir do Leviatã, capaz de impor uma tréplica a uma réplica que não houve, de ameaçar sem respaldo na Lei e de impor a verdade única.
Não se trata de limites de uma comissão, mas da falta de limites do Estado.
 
* Historiador 

LONGERISH, Peter. Joseph Goebbels: uma biografia. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2014. p. 214.

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