Foi com a Lei da Anistia que o Estado brasileiro
reconheceu mortes e torturas durante o regime militar e não com comissões
governamentais focadas em interesses bem mais estreitos do que a consolidação da
democracia. Hoje, passados vinte anos, é possível constatar o verdadeiro
objetivo de muitos marxistas arrependidos e renitentes que assumiram o poder
desde meados dos anos 90: a sua redenção perante a História. Irresponsáveis e
egoístas, ignoram na sua soberba de poder que o atual estágio de nossa evolução
democrática tem um ponto de partida, a inauguração do atual regime em 1985, a
única República que não se instalou no Brasil por um golpe de estado,
historicamente ancorada, gostem ou não, na Lei da Anistia de 1979.
Sem refletir sobre o significado e consequências
de sua atitude, esquecem lições como as deixadas nas palavras de um dos grandes
pensadores do século XX, Norberto Bobbio: “uma sociedade democrática, pode
suportar a violência criminal: embora dentro de certos limites [...]. Não pode
suportar a violência política”. É essa violência politica que o governo
brasileiro desconsidera deliberadamente no curso ilegal que promove nos
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, ao omitir a violência doutrinária que
o marxismo instilou no pensamento brasileiro desde os anos 50 e a violência real
que o terrorismo causou nos anos 60 e 70, não só contra pessoas
constitucionalmente incumbidas da manutenção da Lei e da Ordem, mas contra
cidadãos comuns, alheios ou avessos aos projetos revolucionários de tomada de
poder pela força.
Obter ilegalmente armas letais; conspirar contra
a ordem pública; praticar crimes contra a segurança pública; sequestrar,
assassinar e mutilar pessoas; aterrorizar a sociedade mediante atentados
causadores de mortes, ferimentos e destruição e, principalmente, pretender fazer
da população civil o alvo de represálias do governo, conforme preconizou o
teórico da guerrilha urbana Carlos Mariguella, são crimes de violência política,
certamente mais graves do que a violência criminal que a sociedade deve
enfrentar. Na verdade, a tentativa deliberada de se fazerem apagar
tais crimes mediante a criminalização generalizada dos atos de seus
antagonistas, passando por cima do esquecimento que beneficiou ambos, deveria se
constituir em ilícito contra a sociedade, como aconteceu há pouco tempo na
Espanha.
Apagar os próprios crimes pela criminalização
discricionária de outrem é, pelo arbítrio, agravar a incapacidade de uma
sociedade se relacionar com as violações das normas, a anomia, origem desse
risco bastante real à democracia apontado por Ralf Dahrendorf, que é a tirania,
em qualquer de suas formas. Afinal, a democracia, mais do que convergência em
normas nas quais fruímos a convivência pacífica, é a observância do processo, de
cujo desrespeito Bobbio extraiu a advertência que deve nos assombrar
permanentemente: “se é que no futuro ainda existirão governos democráticos, algo
que não podemos saber com certeza”.
Ao contrário do que se toma hoje do noticiário
nacional, o respeito pela letra e espírito da Anistia diz muito pouco quanto aos
seus efeitos imediatos, materializados na responsabilização de uns e na
absolvição de outros à revelia da Lei. Por inúmeras razões que deveriam ser
conhecidas e discutidas pela sociedade brasileira, ela diz respeito a todos nós
e ao futuro de nossa democracia.
* Historiador
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