Duas Mães
Era uma manhã cinzenta, chuvosa,
como costumam ser as manhãs, e os dias, nos feriados de finados. O cemitério
estava lotado de gente, capas e guarda-chuvas que, abertos, formavam um,
mórbido, caleidoscópio.
Do lado de fora, os camelôs
estavam em estado de graça: nunca se vendeu tantas flores, velas, santinhos e
outras bugigangas que se compra para honrar a memória dos que se foram. Para
sempre, segundo os céticos e até a ressurreição da carne, para os crentes.
No meio da confusão e da profusão
de flores, velas, cores, capas, guarda-chuvas, duas senhoras, sozinhas, uma
branca e uma negra, ambas já em idade um pouco avançada, arrumavam os túmulos de
algum parente. Elas mesmas limpavam o local, lavavam as lápides, retiravam as
flores secas e trocavam por flores novas, raspavam os restos de velas antigas e
preparavam os castiçais para receber velas novas.
Em um dado momento, se
entreolharam por uns segundos, a senhora negra se aproximou, viu a foto de um
jovem na lápide e perguntou: - Seu filho? Como ele morreu?
- Não sei bem - respondeu a
branca. – Um dia ele saiu de casa dizendo que não aguentava mais ver as coisas
do jeito que estavam, que o povo tinha direito à liberdade, que ia lutar com
todas as forças para tirar os militares do poder e implantar no Brasil um
sistema onde não haveria mais pobre, nem rico e em que todos seriam iguais. Só
sei que, depois desse dia, nunca mais o vi, até o dia em que o corpo dele
apareceu numa calçada, em um subúrbio do Rio, com um tiro no peito. Ele só não
foi enterrado como indigente porque o motorista do rabecão era o nosso vizinho e
o reconheceu. Foi Deus que ajudou. Nunca descobriram que o matou, nem porque
atiraram nele. Não sei o que deu nele. Estava terminando a faculdade e namorava
uma moça de quem eu gosto muito. Eu achava que logo, logo ia ser avó, e tudo
acabou assim.
Já com lágrimas nos olhos,
perguntou: - E você, é seu filho também, como ele morreu?
- É sim – respondeu a negra. –
Conforme me informaram, ele morreu em um tiroteio com terroristas. Ele era
Tenente do Exército, andava preocupado, vivia dizendo que havia uns “rebeldes
sem causa”, um bando de terroristas que estava tentando derrubar o governo,
dizendo que queriam a volta da democracia, mas o que pretendiam mesmo era
implantar um regime comunista no Brasil. E que ele ia fazer o que pudesse pra
ajudar a botar esses agitadores na cadeia. Foi de madrugada, sabe. Um amigo dele
me contou o que houve. Parece que eles entraram em um tal de “aparelho”, mas a
turma reagiu atirando e acertaram ele. Mesmo ferido, ele atirou e parece que
acertou alguém, mas os sujeitos conseguiram fugir. Eu já estava de pé,
preparando o café pra ele, quando aquele jipe verde parou na minha porta e o
Major tocou a campainha do portão. Eu adivinhei logo: meu filho não ia voltar
pra casa nunca mais. Também nunca descobriram quem eram os desgraçados que
estavam no tal aparelho, nem quem atirou nele.
De repente, meio sem saber por
que, entre lágrimas e soluços, as senhoras se abraçaram num gesto de consolo
mútuo e, quase simultaneamente, concluíram: - “o seu filho pode ter matado o
meu”.
Como que adivinhando, uma, o
pensamento da outra, se afastaram e se olharam firmemente, como se pedissem
desculpas pelas atitudes dos filhos.
Em profundo silêncio, recolheram
cada uma suas coisas, saíram lado a lado do cemitério e, no portão, abraçaram-se
mais uma vez, apertaram as mãos e se foram, cada uma carregando a sua dor.
Rio de
Janeiro, 11/12/2014
Cel Jorge
Bastos Costa
A propósito
do relatório da “Comissão Nacional da VERSÃO”
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