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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

... judices fiunt



·         Sérgio Paulo Muniz Costa


A justificativa apresentada para retirar um processo que investiga a ex-ministra da Casa Civil do governo Dilma da alçada da 13a Vara da Justiça Federal em Curitiba seria ingênua, não fosse o seu significado. Dizer que a justiça é única, que o Ministério Público é único e que a Polícia Federal é única para justificar a tese de que todos os outros juízes são competentes para lidar com o maior caso de corrupção da História vai de encontro à flagrante realidade exposta nas rumorosas apurações feitas tanto pelo Conselho Nacional de Justiça quanto pelas Corregedorias Estaduais. Tomada ao pé da letra, é um erro crasso, pois, deixando de lado a questão da idoneidade, em qualquer sistema judicial nem todos os juízes estão aptos a julgarem questões complexas. Submetida à mais elementar análise crítica, ela significa que vai se jogar fora toda a competência, e muito provavelmente as provas (a grande meta dos advogados), acumuladas  ao longo de um trabalho cuja excelência foi reconhecida no próprio STF. O que vai sobrar? A prosperar a decisão, incompreensivelmente apresentada à sociedade como “saneadora” (?), ficará o registro de mais uma oportunidade perdida na História do Brasil.
Não é a primeira decisão do STF que causa estupor, a começar pela homologação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em março de 2009; passando pelo forfait no caso Battisti em 2011; até termos que engolir, no início de 2014, a descaracterização da quadrilha que assaltou os cofres públicos no famigerado mensalão. E como isso acontece? Aí entramos numa área de limites imprecisos, na qual se prefiguram as decisões legais das diferentes instâncias do poder constituído no País: o pensamento. Distintamente do politicamente correto, aquele misto de conveniência e covardia que não permite sequer o julgamento objetivo de fatos e acontecimentos, o pensamento ideologicamente orientado tem pouca preocupação com coerência, conhecimento, justiça e bem comum, permeando algumas das mais graves e controvertidas decisões tomadas recentemente no Brasil.
Via de regra, chega-se a essas decisões pela desconstrução paulatina de um alvo, tanto na mídia como na academia. Ideias heterodoxas começam a circular nos mais elevados níveis de decisão da República pela macaqueação com ares epistemológicos veiculada em espaços privilegiados na imprensa e em seminários monocórdios, até assumir contornos de verdade consensual que justifica todo e qualquer absurdo. “Debate” significa divulgar o mesmo em diferentes tons, aparentando diversidade de opiniões.  Dificilmente se apresenta uma visão substancialmente distinta da pretendida que logo se torna hegemônica, restando a opinião pública não informada ou desinformada a respeito do que está em discussão e de suas consequências. No caso da Lava Jato a onda de indignação contra a corrupção impôs aos operadores da desconstrução uma abordagem mais discreta, mas nem por isso menos audaciosa. A via escolhida foi a sua “matriz ideológica”, a operação Mãos Limpas desencadeada na Itália no início dos anos 90. A irresponsabilidade palanqueira não teve o menor pudor em apresenta-la como o “fim da política” que “resultou no Berlusconi”, soando como música em gabinetes e salões de Brasília e instrumentalizando a sub-reptícia minagem da Operação Lava Jato que tanto inquieta certos poderosos desta República.
No tocante à Mãos Limpas, tratando-se de algo acontecido na Itália no final do século XX, antes de se deixar arrebatar por achismos cibernéticos, é mais prudente ter em conta referências sólidas, começando, por exemplo,  com o vasto trabalho do historiador Tony Judt. “Na Itália, onde, desde a guerra, os democratas-cristãos haviam desfrutado de uma relação confortável e rentável com os banqueiros, empresários, empreiteiros, chefes da cidade, funcionários do Estado e – conforme insistentes rumores - a Máfia, uma nova geração de jovens magistrados começou a romper com décadas de incrustrado silêncio público. Ironicamente, foi o Partido Socialista que caiu primeiro, derrubado pelo tangentopoli ("cidade suborno'), o escândalo em 1992 que levou a investigações sobre sua gestão da cidade de Milão. O partido caiu em desgraça e seu líder, o ex-primeiro-ministro Bettino Craxi, foi forçado a fugir através do Mediterrâneo para o exílio na Tunísia” (Post War, p. 746).
Pode ter sido uma ironia que o PSI tenha sido o primeiro a cair, mas isso esteve longe de ser uma injustiça. De nihilo nihil diria Lucrécio. E Norberto Bobbio, um dos mais influentes teóricos e pensadores da esquerda italiana, quase dez anos antes do tangentopoli, responderia ao convite de Craxi para colaborar no programa para as eleições nos seguintes termos: “ ...o problema é que com a sua prática inconsequente no exercício do poder, vocês estão se tornando a cada vez menos confiáveis. Até mesmo as suas boas intenções se parecem cada vez mais com aquelas das quais estão repletos os caminhos para o inferno” (Diário de um século, p. 188).
À época da conclusão do seu livro, Judt pôde escrever que “o único beneficiário duradouro deste terremoto político foi um ex-cantor, o duvidoso magnata da mídia Silvio Berlusconi, que entrou para a política, não tanto para promover a limpeza nacional da casa como para assegurar que seus próprios negócios permanecessem seguramente inalterados”. Porém, depois de dez anos e duas condenações de Berlusconi, não pode restar dúvida que o grande legado para a Itália foi o de que ninguém está acima da Lei, nem mesmo o supremo mandatário, algo impensável e infactível antes da Mãos Limpas, por mais incompleta que a operação possa ter parecido aos olhos de tantos. Essa história ainda está por ser escrita aqui no Brasil, pelo menos enquanto o nosso Berlusconi andar faceiro a serviço da inalterabilidade do esquema que levou o País ao presente quadro de insolvência política, econômica e moral.
Não há, por certo, somente um juízo no País, mas o Brasil não prescindirá jamais do bom juízo, aquele que só poder provir dos juízes que se fazem e não dos que são feitos.

* Historiador

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