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Sérgio
Paulo Muniz Costa
A justificativa apresentada para retirar
um processo que investiga a ex-ministra da Casa Civil do governo Dilma da
alçada da 13a Vara da Justiça Federal em Curitiba seria ingênua, não
fosse o seu significado. Dizer que a justiça é única, que o Ministério Público
é único e que a Polícia Federal é única para justificar a tese de que todos os
outros juízes são competentes para lidar com o maior caso de corrupção da
História vai de encontro à flagrante realidade exposta nas rumorosas apurações
feitas tanto pelo Conselho Nacional de Justiça quanto pelas Corregedorias
Estaduais. Tomada ao pé da letra, é um erro crasso, pois, deixando de lado a
questão da idoneidade, em qualquer sistema judicial nem todos os juízes estão
aptos a julgarem questões complexas. Submetida à mais elementar análise
crítica, ela significa que vai se jogar fora toda a competência, e muito provavelmente
as provas (a grande meta dos advogados), acumuladas ao longo de um trabalho cuja excelência foi
reconhecida no próprio STF. O que vai sobrar? A prosperar a decisão,
incompreensivelmente apresentada à sociedade como “saneadora” (?), ficará o
registro de mais uma oportunidade perdida na História do Brasil.
Não é a primeira decisão do STF que causa
estupor, a começar pela homologação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do
Sol, em março de 2009; passando pelo forfait
no caso Battisti em 2011; até termos que engolir, no início de 2014, a
descaracterização da quadrilha que assaltou os cofres públicos no famigerado
mensalão. E como isso acontece? Aí entramos numa área de limites imprecisos, na
qual se prefiguram as decisões legais das diferentes instâncias do poder
constituído no País: o pensamento. Distintamente do politicamente correto, aquele
misto de conveniência e covardia que não permite sequer o julgamento objetivo
de fatos e acontecimentos, o pensamento ideologicamente orientado tem pouca
preocupação com coerência, conhecimento, justiça e bem comum, permeando algumas
das mais graves e controvertidas decisões tomadas recentemente no Brasil.
Via de regra, chega-se a essas decisões
pela desconstrução paulatina de um alvo, tanto na mídia como na academia. Ideias
heterodoxas começam a circular nos mais elevados níveis de decisão da República
pela macaqueação com ares epistemológicos veiculada em espaços privilegiados na
imprensa e em seminários monocórdios, até assumir contornos de verdade
consensual que justifica todo e qualquer absurdo. “Debate” significa divulgar o
mesmo em diferentes tons, aparentando diversidade de opiniões. Dificilmente se apresenta uma visão
substancialmente distinta da pretendida que logo se torna hegemônica, restando a
opinião pública não informada ou desinformada a respeito do que está em discussão
e de suas consequências. No caso da Lava Jato a onda de indignação contra a
corrupção impôs aos operadores da desconstrução uma abordagem mais discreta,
mas nem por isso menos audaciosa. A via escolhida foi a sua “matriz
ideológica”, a operação Mãos Limpas desencadeada na Itália no início dos anos
90. A irresponsabilidade palanqueira não teve o menor pudor em apresenta-la
como o “fim da política” que “resultou no Berlusconi”, soando como música em
gabinetes e salões de Brasília e instrumentalizando a sub-reptícia minagem da
Operação Lava Jato que tanto inquieta certos poderosos desta República.
No tocante à Mãos Limpas, tratando-se de
algo acontecido na Itália no final do século XX, antes de se deixar arrebatar
por achismos cibernéticos, é mais prudente ter em conta referências sólidas, começando,
por exemplo, com o vasto trabalho do
historiador Tony Judt. “Na Itália, onde, desde a guerra, os democratas-cristãos
haviam desfrutado de uma relação confortável e rentável com os banqueiros,
empresários, empreiteiros, chefes da cidade, funcionários do Estado e –
conforme insistentes rumores - a Máfia, uma nova geração de jovens magistrados
começou a romper com décadas de incrustrado silêncio público. Ironicamente, foi
o Partido Socialista que caiu primeiro, derrubado pelo tangentopoli ("cidade suborno'), o escândalo em 1992 que levou
a investigações sobre sua gestão da cidade de Milão. O partido caiu em desgraça
e seu líder, o ex-primeiro-ministro Bettino Craxi, foi forçado a fugir através
do Mediterrâneo para o exílio na Tunísia” (Post War, p. 746).
Pode
ter sido uma ironia que o PSI tenha sido o primeiro a cair, mas isso esteve
longe de ser uma injustiça. De nihilo
nihil diria Lucrécio. E Norberto Bobbio, um dos mais influentes teóricos e
pensadores da esquerda italiana, quase dez anos antes do tangentopoli, responderia ao convite de
Craxi para colaborar no programa para as eleições nos seguintes termos: “ ...o
problema é que com a sua prática inconsequente no exercício do poder, vocês
estão se tornando a cada vez menos confiáveis. Até mesmo as suas boas intenções
se parecem cada vez mais com aquelas das quais estão repletos os caminhos para
o inferno” (Diário de um século, p. 188).
À época da conclusão do seu livro, Judt
pôde escrever que “o único beneficiário duradouro deste terremoto político foi
um ex-cantor, o duvidoso magnata da mídia Silvio Berlusconi, que entrou para a
política, não tanto para promover a limpeza nacional da casa como para
assegurar que seus próprios negócios permanecessem seguramente inalterados”. Porém,
depois de dez anos e duas condenações de Berlusconi, não pode restar dúvida que
o grande legado para a Itália foi o de que ninguém está acima da Lei, nem mesmo
o supremo mandatário, algo impensável e infactível antes da Mãos Limpas, por
mais incompleta que a operação possa ter parecido aos olhos de tantos. Essa
história ainda está por ser escrita aqui no Brasil, pelo menos enquanto o nosso
Berlusconi andar faceiro a serviço da inalterabilidade do esquema que levou o
País ao presente quadro de insolvência política, econômica e moral.
Não há, por certo, somente um juízo no
País, mas o Brasil não prescindirá jamais do bom juízo, aquele que só poder
provir dos juízes que se fazem e não dos que são feitos.
*
Historiador
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