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terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Estelionato histórico

Escrito por Sérgio Paulo Muniz Costa

Imagine um Brasil que elegesse adversários políticos para presidente e vice-presidente da República, para exercerem juntinhos os seus mandatos, como aconteceu com JK e Jânio Quadros com João Goulart. E no qual Carlos Prestes, o líder do ilegal Partido Comunista Brasileiro, com sua prisão decretada, submisso a uma potência estrangeira responsável pela morte de brasileiros – a hoje finada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – circulasse faceiro por aí, reunindo-se escondidinho com autoridades e afirmando estar "no governo".

Some-se a isso um presidente anterior, Getúlio Vargas, que descobriu que o "mar de lama" que o cercava no palácio mandava matar opositores e, desesperado ante a perspectiva de ser alijado do poder, decidiu se matar. Subtraia então um presidente em exercício, Carlos Luz, decidindo dar um golpe para não deixar o sucessor eleito tomar posse, com o seu ministro da Guerra, o General Lott, dando um contragolpe com direito a correria de tropas pelo Rio de Janeiro e tiro de canhão em navio de guerra da Marinha apinhado de políticos.

Se ouviu falar, mas não entendeu nada de uma estória de marinheiros rebelados no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, extrapole para uma tragédia bem recente e visualize os controladores de voo da Aeronáutica, arrolados na investigação do acidente da aeronave da Gol em 2006, depois de presos por indisciplina, saírem libertos pelo presidente da República, em triunfo diante das câmeras, carregando nos ombros um "Brigadeiro do Povo", e que o ministro (ou comandante) da Aeronáutica que os puniu se demitisse.

Volte um pouquinho para ver se entende o motim dos sargentos em Brasília e coloque militares da ativa armados e entrincheirados num ministério da Esplanada, amotinados contra uma decisão do STF. Multiplique tudo pela renúncia de Jânio Quadros, eleito pela direita, e a convocação de João Goulart,que estava visitando a China comunista em plena Guerra Fria,para assumir o governo.

Divida isso pela apresentação por um deputado no Congresso Nacional do documento dos ministros militares, alertando que aquilo não ia dar certo, e Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, em resposta, promovendo um levante armado no Rio Grande do Sul, estado que governava. Eleve tudo ao quadrado com João Goulart, presidente em pleno poder, berrando num comício em frente ao Ministério da Guerra para uma multidão ensandecida que pedia "reformas de base" na "lei ou na marra", indo participar dias depois de uma assembleia de dois mil sargentos no Automóvel Clube do Brasil.

Complicado não? Mas esse era o Brasil de cinco ou seis décadas atrás.O que aconteceu, só pode hoje ser imaginado, pois nada disso está nos livros. Foi apagado. Afinal, em sociedades não desenvolvidas, os poderosos do momento podem promover ou proibir os livros que bem entendem, pretendendo reescrever a história a seu bel prazer, e isso, por sinal, faz parte do desconhecimento que as caracteriza.

Por incrível que pareça, não são livros que fazem a História. Eles podem ser elogiados, queimados ou ignorados. O que faz a História são os registros dos fatos e a memória dos acontecimentos, sujeitos ao reexame dos pesquisadores e às interpretações dos historiadores. Neste ano, não serão os incontáveis livros, filmes, peças teatrais, seminários, reportagens e programas de rádio e TV sobre 1964 -de cunho sectário e marxista mas pagos com o dinheiro de todos nós - que irão alterar a memória e a História do Brasil.

No entanto, o apagamento transitório da História, a recusa em examinar prudentemente os acontecimentos de nosso passado tem consequências, políticas.

É difícil imaginar que o maniqueísmo esquerdista que se pratica hoje no País não afete a nossa capacidade de apreender a realidade. Emprega-se o Exército e as polícias para expulsarem milhares de brasileiros de suas terras em nome de supostos direitos posteriores, ao mesmo tempo em que se impede que defendam o incontrastável direito anterior de propriedade.

A miscigenação e a tolerância que marcaram nossa evolução histórica foram descartadas, substituídas por um racialismo que compromete a unidade nacional e a paz social. Impõe-se à população ordeira e trabalhadora uma legislação cada vez mais intrusiva e extorsiva, ao mesmo tempo que se transige no cumprimento da lei e da ordem por marginais individuais e coletivos.

Um país que recentemente se orgulhou de universalizar o ensino elementar, queda-se perplexo diante da falência das escolas em ensinar o mínimo a muitos.

A liberdade de ação que a esquerda dispõe atualmente para desgovernar o Brasil foi conquistada com a falsificação do passado. Algo tão eficaz que conseguiu calar a direita e o centro do espectro politico no debate sobre os rumos do País.

Parte expressiva da dita oposição tem as mesmas origens esquerdistas dos grupos hegemônicos no poder e tem-se a impressão de que simplesmente gostaria de sê-los, em gênero, número e grau.

Havia durante o regime militar mais pluralismo politico e ideológico do que existe hoje. Isso é um fato e assinala um retrocesso do qual muito pouca gente se dá conta.

A diferença entre o Brasil de 1964 e 1985 é abismal, não só do ponto de vista econômico e social. O arcabouço politico, jurídico e institucional da atual república é também o resultado do reformismo do regime militar, goste-se dele ou não. Apenas alguns ousarão afirmar isso ao longo de 2014, mas o mínimo que conseguirem servirá sempre para lembrar que aquilo que fazemos com nossa memória enquanto povo é o que definirá o que seremos como nação.


Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador

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