O que se discute aqui é o óbvio: se a teoria do domínio do fato serve para incriminar José Dirceu, a fortiori (com maior razão), também serve para incriminar Lula.
Desde o
início do julgamento do mensalão, percebe-se nítida divergência entre o
relator, Joaquim Barbosa, e o revisor, Ricardo Lewandwski. Contudo, na
parte em que trata do acusado José Dirceu, a divergência ficou bem mais
acentuada. O voto do relator é parecido com uma peça acusatória. Por
outro lado, o voto do revisor nada se diferencia de uma peça defensiva.
Peço venia aos dois ministros, mas estou apenas constatando uma realidade que, aliás, será consignada no livro que lançarei em breve.
O relator
afirma que há provas abundantes da culpa de Dirceu. Em sentido
contrário, o revisor diz que não há prova alguma. A realidade é que a
prova técnica contra Dirceu é extremamente frágil. Nesse diapasão, pela
ótica dos princípios que norteiam o processo penal, o revisor tem razão,
mormente porque, Jefferson, que poderia ser utilizado como testemunha
ou delator, beneficiado pela delação premiada, foi incluído no processo
como acusado, fragilizando por demais o viés probatório da revelação que
fez sobre o esquema criminoso. Ocorre que o cenário delitivo é
gigantesco e aí fica difícil não enxergar a lógica, isto é, a ação dos
que estão por trás dos executores. Aliás, a ministra Rosa Weber,
invocando “a lógica autorizada pelo senso comum”, ressaltou que na Justiça Trabalhista ela proferiu diversos votos, sob a inspiração de Malatesta, no sentido de que “o ordinário se presume, só o extraordinário se prova”. Conquanto
esse entendimento possa ter agasalho nas lides laborais, em matéria
penal, ao meu sentir, ele acutila os princípios da verdade real,
presunção de inocência e in dubio pro reo.
Em socorro ao raquítico quadro probatório, que poderia ser derrubado pelo princípio do in dubio pro reo, os
ministros que fazem divergência ao revisor invocaram a teoria do
domínio do fato, importada do direito alemão. Ocorre que a teoria do
domínio do fato não dispensa prova, caso contrário, estar-se-ia
institucionalizando a punição pela simples relação hierárquica. Assim,
por exemplo, o chefe da repartição seria punido por crime ocorrido na
sua área de atuação, independente da relação de causalidade, dolo ou
culpa, bastando haver relação lógica de que ele, como chefe, teria o
domínio da situação. Isso fere os princípios que norteiam a
responsabilidade penal subjetiva. Daí a condenação de Dirceu surpreender
muita gente, inclusive eu, que não acreditava que iria acontecer, mas
que hoje é uma realidade, diante dos três votos nesse sentido e da
predisposição condenatória de outros ministros.
Como disse
em artigo anterior, o STF pode tudo, uma vez que é a última instância na
dicção do direito. Assim, pragmaticamente, é despiciendo discutir o
acerto ou erro da decisão condenatória, que ora se vislumbra. O que se discute aqui é o óbvio: se a teoria do domínio do fato serve para incriminar José Dirceu, a fortiori (com maior razão), também serve para incriminar Lula.
Nesse sentido, como o relator consignou que o “elevadíssimo cargo” que
era ocupado por Dirceu lhe conferia o domínio do fato. Por razão maior, o
cargo máximo que era ocupado por Lula lhe coloca em situação de
responsabilidade superior.
Aliás, se
em relação a Dirceu, o depoimento de Jefferson não foi confirmado por
outras testemunhas, o mesmo não aconteceu em relação a Lula. Segundo o
voto do relator, o depoimento de Jefferson, dando conta de que informara
ao ex-Presidente a existência do mensalão, teve ampla confirmação.
Vejamos trecho do voto: “A testemunha (refere-se a Arlindo Chinaglia)
também confirmou que participou de reunião em que o acusado ROBERTO
JEFFERSON informou ao Presidente Lula sobre a existência dos pagamentos.
Aliás, todos os interlocutores citados por ROBERTO JEFFERSON – Senhores
Arlindo Chinaglia, Aldo Rebello, Walfrido dos Mares Guia, Miro
Teixeira, Ciro Gomes e o próprio ex-Presidente da República –
confirmaram que foram informados, por ROBERTO JEFFERSON, nos anos de
2003 e 2004, sobre a distribuição de dinheiro a parlamentares para que
votassem a favor de projetos do interesse do Governo. Portanto, muito
antes da decisão de ROBERTO JEFFERSON de delatar publicamente o
esquema.” Isso desmente o ex-Presidente Lula de que “não sabia de nada” sobre o mensalão.
O ministro Joaquim Barbosa também consignou no voto que “o
senhor Ricardo Espírito Santo Salgado, presidente do banco Espírito
Santo, afirmou que manteve várias reuniões, diretas e pessoais, com o
próprio Presidente da República.” Ora,
o que o presidente de um banco privado faria em reunião direta e
pessoal com o Presidente da República? A resposta a esse questionamento
pode ser vista em outro trecho do voto do relator: “Roberto
Jefferson disse em depoimento prestado à PF e confirmado em juízo, o
seguinte: Que José Dirceu afirmou ao declarante que o PT estaria sem
recursos para cumprir o acordo, uma vez que a PF havia prendido 62
doleiros. Que em um encontro ocorrido no início de janeiro de 2005, o
então ministro afirmou que havia recebido, juntamente com o Presidente
Lula, um grupo da Portugal Telecom ;com o Banco Espírito Santo, que
estaria em negociações com o Governo brasileiro. Que José Dirceu
afirmou que haveria a possibilidade de que referido grupo econômico
pudesse adiantar cerca de oito milhões de euros, que seriam repartidos
entre o PT e o PTB.”
O nome
do ex-Presidente Lula está em várias partes do voto do relator, de forma
a não deixar dúvida alguma de seu envolvimento com o esquema criminoso.
Mas não é só isso. Ao contrário de Dirceu, que não praticou nenhum ato
material, pelo menos não deixou rastro disso, Lula praticou atos
materiais, que se enquadram como uma luva nos artigos 13 e 29 do Código
Penal. Senão vejamos. Duas foram as principais fontes de recursos do
mensalão. A primeira está relacionada aos contratos fraudulentos com as
empresas de publicidade de Valério. Para viabilizar a contratação de
tais empresas, foi editado o decreto 4.799/2003, que além de afastar o
incômodo da licitação, permitindo a contratação direta, conferiu poderes
a Valério para funcionar como uma espécie de administrador de recursos
públicos. Esse decreto foi assinado pelo ex-Presidente Lula, a mando de
quem não se sabe, mas a assinatura é dele.
Outra
importantíssima fonte de recursos do mensalão veio de empréstimos
consignados em folha de pagamento a aposentados do INSS. Primeiro foi
editada a Medida Provisória 130, que criou os empréstimos. Assim, que
foi publicada a MP, o banco BMG, envolvido no esquema, procurou
habilitar-se para fazer tais empréstimos. Contudo, não obteve êxito,
porque um inconveniente parecer da Procuradoria Federal do INSS aduziu
que os empréstimos somente poderiam ser realizados por bancos públicos,
pagadores de benefícios previdenciários. O empecilho foi superado com a
edição do decreto 5.180, dispondo expressamente que mesmo banco privado,
ainda que não fosse pagador de benefício previdenciário, poderia se
habilitar. Graças à explicação do referido decreto, o BMG logrou êxito à
habilitação. Tanto a medida provisória como o decreto foram assinados
pelo ex-Presidente Lula, a mando de quem não se sabe, mas a assinatura é
dele.
Além da
assinatura do “democrático” decreto, que inclusive levou a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) a representar criminalmente contra o
ex-Presidente, arquivada pelo então procurador-geral da República Antonio Fernando, Lula
enviou mais de dez milhões de cartas (assinadas por ele) a aposentados,
anunciando a “novidade” dos empréstimos, o que fez o BMG, com apenas
dez agências, faturar três bilhões de reais, superando a Caixa
Econômica, com suas duas mil agências. Vale lembrar, que o BMG
“emprestou” bastante dinheiro ao PT, sem qualquer garantia.
Dispõe o artigo 13 do Código Penal: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.” Considerando
que as duas principais fontes de recursos do mensalão decorreram de
atos praticados por Lula, não resta dúvida de que, se não fosse ele, o
resultado não teria ocorrido (como ocorreu). Assim, de acordo com o artigo 29 do Código Penal que dispõe: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.”, Lula
teria que ter sido acusado, nem precisaria invocar a teoria do domínio
do fato, porquanto a conduta dele está inserida na cadeia de
causalidade, sendo que há provas abundantes disso, inclusive do dolo.
A propósito, por causa dessa aberrante omissão, representei contra o
ex-procurador-geral da República (PGR) Antonio Fernando, autor da
denúncia do mensalão, a fim de que fosse apurado crime de prevaricação,
por ele ter deixado Lula fora da acusação, não obstante o ex-Presidente
ter praticado atos escandalosamente destinados a fomentar o esquema
criminoso. A representação foi arquivada, sem que o mérito tenha sido
enfrentado.
No ano
passado, representei ao PGR, Roberto Gurgel, apontando fatos que indicam
o envolvimento do ex-Presidente Lula no esquema do mensalão, que
inclusive sustentam ação de improbidade contra ele, em trâmite na 13ª
Vara Federal do Distrito Federal. Recentemente, Gurgel arquivou a
representação, alegando que os fatos nela contidos são objetos de
apuração no inquérito policial 2.474, que tramita no STF desde março de
2007. Agora,
com a condenação de Dirceu que, por diversas vezes, falou que nada
fazia sem o conhecimento e a anuência de Lula, bem como as várias
passagens do voto do relator, apontando o envolvimento direto do
ex-Presidente, sem contar que na teoria do domínio do fato, Lula estava
acima de Dirceu, não tem como deixá-lo impune. Lula não é uma entidade
para ficar incólume à lei nem é um idiota, para não responder pelos seus
atos, porquanto, ainda que não tivesse discernimento algum, deveria ser
submetido à medida de segurança, nos termos do artigo 97 do Código
Penal.
Para saber mais sobre a realidade do mensalão, que não sai nos boletins oficiais, vide os artigos: “Mensalão: o que poucos sabem, e o Brasil deveria saber”; “Lula, Dirceu e os Tuiuiús: a realidade oculta do mensalão”, bem como outros artigos que estão no meu site www.manoelpastana.com.br
Manoel Pastana
Autor do livro autobiográfico De Faxineiro a Procurador da República
Procurador da República no Rio Grande do Sul
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