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terça-feira, 16 de outubro de 2012

De muitos, poucos e todos



No dia  seguinte ao primeiro turno das eleições municipais, 8 de outubro, um acontecimento mantido afastado do foco do noticiário da imprensa renovou as preocupações quanto aos rumos do País.
Embalada pela cantilenada "reparação", a militância dos Direitos Humanos incrustada no governo federal fez acontecer na Academia Militar das Agulhas Negras a "cerimônia pública de reconhecimento de responsabilidade do Estado pela violação dos Direitos Humanos de Márcio Lapoente da Silveira", segundo os termos da nota pública expedida no último dia 4 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República a respeito da questão afeta ao falecimento do Cadete Lapoente em atividade de instrução no dia 9 de outubro de 1990 naquela Academia Militar.
O documento é uma peça retórica caracterizada pela imprecisão, contradição e afronta. Menciona um "evento criminoso" sem dizer qual, contradiz-se ao colocar a família do cadete sob a proteção do Estado Democrático do Direito no Brasil que é demandado em instância internacional por supostamente lhe negar direitos e afronta a Justiça brasileira quando atribui  ao Estado a "responsabilidade pela demora na tramitação das ações decorrentes do fato".
Culminando longo e tortuoso caminho, a nota transforma a inverdade da tortura como causa da morte do Cadete Lapoente, plantada no artigo 63 do Relatório 78 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), de 16 de outubro de 2008, em "violação dos Direitos Humanos do Cadete Lapoente".
Do que se trata então? Trata-se da mentira usada como aríete para investir contra a opinião pública que depois é abandonado às chamas do assalto consumado às instituições. Trata-se do sofisma da atribuição das características do todo a quem se distingue no todo, os militares que se submetem voluntariamente aos riscos e privações para defender a sociedade.
Trata-se do menosprezo à sociedade brasileira tida por ignorante ou insensível diante do significado do numeral da data da cerimônia pública, não o 9 do dia em ocorreu a tragédia do Cadete Lapoente, mas sim o 8, também de outubro, 45º aniversário da morte de Che Guevara, ou 8 de novembro no calendário juliano então em vigor na Rússia, quando há 95 anos triunfou a Revolução Bolchevista.
Porém a temeridade da decisão do governo federal em efetivar o acordo firmado com a CIDH/OEA ultrapassa os limites éticos, lógicos ou ideológicos.  A vigência e a tradição constitucional no Brasil atribuem ao poder executivo grande relevância na representação externa da Nação, sem que isso signifique a alienação dos demais poderes constituídos. O governo pode, nos termos da Constituição, representar o Estado brasileiro, mas não constitui sozinho o Estado brasileiro.
É um abuso inominável que "em nome do Estado, o Ministério da Defesa, a Secretaria de Direitos Humanos, a Advocacia Geral da União, o Ministério das Relações Exteriores e o Exército Brasileiro, perante a sociedade brasileira, (reconheçam) ter havido violações  aos Direitos Humanos perpetrados pelo Estado" em função de um processo instalado em organismo internacional que, se julgado, subordinaria a sua sentença à homologação pela Justiça brasileira, independentemente desse provimento de autoridade estrangeira constituir ato judicial ou não, conforme o regramento estatuído no artigo 105, I, i, da Constituição Federal, esclarecido pelo artigo 4º da Resolução de número 9 do Superior Tribunal de Justiça, de 4 de maio de 2005. 
A pretendida astúcia dos ideólogos do Planalto em atalhar a conclusão do processo pelo "acordo de solução amistosa" e  assim blindá-lo contra o escrutínio da Justiça brasileira não conseguiu impedir a constatação de que a soberania nacional foi enxovalhada nesse lamentável episódio.
Já a audácia deste desafio ao Judiciário parece não ter sido corretamente dimensionada no seu alcance e gravidade.
Pior, a constitucionalidade do País foi, mais uma vez, atacada por ações e omissões que voltam a colocar dúvidas quanto ao respeito ao Estado de Direito no Brasil justamente quando a sociedade parece emergir de um período de questionamento de suas instituições.
Muitos desdenham da importância deste episódio, cuidadosamente circunvalado pelo Planalto. Afinal, é mais um na longa sequência que caracteriza uma verdadeira Constituinte em fluxo que vai modificando o arcabouço institucional do País. Poucos levantam ainda a voz para se contrapor ao arbítrio que cresce, mas todos, certamente, pagaremos por isso.  

Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador

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