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terça-feira, 17 de julho de 2012

A Nova Degola

Sérgio Paulo Muniz da Costa*

É de causar perplexidade a naturalidade com que comentaristas analisam o processo de composição da base de apoio político aos governos na presente República, dando como pacificamente aceito que ministérios sejam loteados entre os partidos e que todas as administrações, Sarney, Collor, Itamar, FHC e Lula, assim tenham procedido. Maior ainda a perplexidade quando vai ficando claro o para quê, aflorando dos escândalos cada vez maiores que tomam as manchetes quase todos os dias. Mas essa perplexidade aumenta com as comparações entre a "forma Dilma de governar" e a "forma mais flexível" de Lula, esta lembrada com "saudades" em determinados arraiais políticos. Vamos sendo convencidos de que não há alternativa, ainda mais quando uns, corruptos, usam seus estranhos poderes para fazer com que muitos, se não todos, sejam tomados por eles. Tudo indica que é essa a prática consumada, e infelizmente parece não ser novidade.
Na noite de 24 de abril de 1900, no Brasil de trinta e um presidentes atrás, o governador eleito de São Paulo, falando à bancada de seu estado, pediu que ela "reconhecesse" todos os candidatos às eleições indicados pelos governadores dos estados, algo que convém ser explicado ao cidadão brasileiro do início do século 21, certamente perplexo, não com o passado mas com o presente. À época, as eleições eram manipuladas livremente por líderes políticos locais sem a menor cerimônia, e os resultados, dois ou três, apareciam estampados nos jornais das respectivas facções. A verificação dos resultados era então feita por comissões das câmaras municipais que, naquela legislatura, passaram a ser constituídas segundo a vontade dos governadores dos estados e, por conseguinte, "reconheciam" como eleitos os candidatos por aqueles indicados. Os candidatos que não tivessem esse apoio, independentemente do número de votos alcançados, seriam "degolados", numa referência à trágica memória do tratamento aos prisioneiros introduzido na Revolução Federalista (1893-1895). O que o senhor Rodrigues Alves pedia à bancada paulista em favor do senhor Campos Sales era o compromisso de "reconhecer" os candidatos indicados pelos governadores, concedendo assim ao presidente da República o que hoje se denominaria governabilidade num presidencialismo de coalizão (?).
A despeito do protesto dos republicanos históricos presentes à reunião, instituiu-se a "política dos governadores", uma prática eleitoral que corromperia a política da República Velha até o seu abrupto fim com a Revolução de 30. O novo regime, instituído por causa das eleições, pouco fez com elas. Votou-se uma só vez, para dar novo mandato a um governante "provisório" de quatro anos, que ao fim de mais três deu um golpe para permanecer outros oito anos no poder.
Passadas três repúblicas, quatro golpes de estado, dois referendos, um plebiscito, dez eleições diretas e seis indiretas para presidente da República, 18 eleições para o Senado e a Câmara Federal, e outras tantas para o Executivo estadual, assembléias legislativas, Executivo e câmaras municipais, corremos o risco de ver ressuscitada da Velha República "a incompatibilidade cada vez mais crescente em que viveriam daí por diante Congresso e o povo", nas palavras do intelectual e jornalista Sertório de Castro, testemunha privilegiada daqueles acontecimentos. Na República Velha, onde todos representantes eleitos eram ilegítimos pelo voto manipulado, eram poupados da degola aqueles que estivessem ao abrigo dos governadores. Hoje, passados 80 anos, quando a suspeita de corrupção parece atingir indistintamente a classe política da atual República, cabe perguntar se estamos diante de uma nova forma de degola.
Agosto, sempre agosto, desta vez nas mãos do Supremo Tribunal Federal. Auguremos que atos republicanos preservem a República da vergonha de si mesma.

(*)Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador e membro do CPE/UFJF

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