O Estado de São Paulo
Sr. (Sra.) Redator (a)
Na semana que passou, constatei que o
Estadão, que tenho lido nos últimos 40 anos, deu extensa cobertura
ao assunto Comissão da Verdade. Ao que foi apresentado no editorial principal,
foram agregadas opiniões de um vasta gama de personagens importantes da
intelligentsia brasileira.
Tento modestamente colocar algumas questões que não
foram mencionadas pelas pessoas notáveis que emprestaram seus talentos para
abordar o problema.
Quando se analisa qualquer país que,
em algum momento da história, tenha desempenhado ou esteja desempenhando o papel
de ator global, verifica-se a prevalência de três condicionantes: a ocorrência
de trauma social, cultural, político e militar generalizado, caracterizador de
ponto de inflexão da história da nação; a existência de intelectual ou conjunto
de intelectuais, identificador e definidor dos rumos dos respectivos país e
sociedade; e a existência de estadistas, capazes de catalisar as energias e
sinergias à luz das indicações da intelectualidade --- não raro, no
aproveitamento do êxito resultante do mencionado trauma ---,
para empreender a transformação que leva o país à atuação global.
Ao se enfocar as metas incluídas no contexto da
Comissão da Verdade, vale a indagação: há ou houve trauma, intelectual e
estadista na evolução brasileira? A amostra de cidadãos testemunhas da
instalação da aludida Comissão é um bom indicador para se arguir, debater e
exercer o pleno direito ao contraditório.
Neste texto, restringirei minhas observações ao
terceiro pilar, a questão dos estadistas. Tratarei do cenário e do contexto
político brasileiro dos últimos trinta anos, sem citar nomes. Minha opção é
tentar uma abordagem despersonalizada e, tanto quanto possível, conceitual e
institucional.
O Maranhão e outras capitanias da Federação são
laboratórios adequados para as experiências sociais, políticas e culturais
requeridas. Seus IDHs e como corolário o padrão de saúde, moradia, educação,
funcionamento da justiça, ou vice-versa, tornam-nos contra-exemplos das práticas
satisfatórias de gestão do bem público. Pois bem, a condução maranhense tem sido
extrapolada para o Brasil todo, durante tanto tempo, não importando que
alinhamento ocupe a liderança maior do País. Por que não instituir uma Comissão
da Verdade para avaliar quantas crianças perecera --- para ser mais realista,
quantos milhares de crianças pereceram ---, inicialmente no Maranhão, e depois
no restante do País, como resultado das práticas políticas, algumas quase
medievais, oriundas daquela capitania?
Em face dos impulsos com gênese em Alagoas, o
Parlamento brasileiro teve uma atuação exemplar em quadra recente de nossa
evolução política. Quais as consequências, para a Nação, da falta de
prosseguimento das ações saneadoras fomentadas pela sociedade e acolhidas pelo
Poder Legislativo? Por que o exemplo maranhense no atinente a alinhamento de
liderança regional com a liderança do País é imitado inequivocamente nessa outra
capitania? Não seria razoável implantar uma Comissão da Verdade para avaliar as
perdas do povo alagoano e as consequências para o País?
É razoável esperar que um intelectual, quando em
função pública executiva, tenha o dever imprescindível de transformar o cenário
educacional em sua esfera de atuação. Não deve haver dúvida de que poucos
intelectuais ocuparam o mais alto cargo da Nação brasileira. Lamentavelmente,
nos anos recentes, o desempenho educacional da juventude brasileira se ombreia
com o dos países com as piores classificações, dentre aqueles que são
mundialmente avaliados --- para dúvida não restar, a referência disponível é a
do PISA, conjunto de procedimentos consagrados, no concerto dos países com nível
minimamente satisfatório de organização. Ora, os brasileiros devem pleitear uma
Comissão da Verdade para identificar as perdas resultantes da inépcia de
intelectual na liderança da Nação e na solução das questões educacionais
patrícias, com ênfase para as consequências da indigência educacional em todas
as demais esferas coletivas, a começar pela morte de criancinhas, o abandono aos
idosos, a segregação em favelas e tantas outras constatações, podendo algumas
ser consideradas hediondas. Essa Comissão teria que apurar também se a verdade
tem apenas uma faceta, apenas um lado, ..., se a verdade é, recursivamente, uma
meia verdade, conforme enunciado por notável integrante da intelectualidade.
Para ele, os assassinatos do Toledo e da Elizabeth Mazza Nunes, perpetrados
por seus próprios companheiros, com motivações e ações tipicamente
nazicomunistas --- para ficar apenas com dois exemplos --- não podem ser objeto
de apuração da verdade. Goethe, dando solavancos no túmulo, tem razões para
estar berrando “Lich, mehr licht!” (“Faaaltaaa luuuzzz!”).
Nossa evolução traz-nos para tempos
mais recentes, onde a despeito da onda de otimismo generalizado, testemunhou-se
um dos períodos de maior corrupção em nosso maltratado País. Por oportuno e por
decência, deve-se asseverar que essa é também uma questão antiga. Basta lembrar
Rui Barbosa e sua célebre Oração aos Moços --- “De tanto ver triunfar as
nulidades...., o homem chega rir-se da honra, a desdenhar da virtude, a ter
vergonha de ser honesto, ...”. Entretanto, o que assombraria mestre
Rui é a dimensão, é a escalada, é a violência da malversação do bem coletivo, na
atualidade. Temos alguns poucos meses para conferir se, do episódio do
“mensalão”, resultará a catarse requerida e para confirmar a celebrada metáfora
de François Andrieux, que colocou na boca do moleiro de Sans Souci o verso:
“--- Oui, si nous
n’avions pas des juges à Berlin.” (“--- Sim, se não houvesse consciências em
Brasília!”). O que se deve arguir é por que não
implantar uma Comissão da Verdade para avaliar os destroços humanos resultantes
do desvio de recursos públicos de hospitais, escolas e programas de moradia e
saneamento, para as mãos de quadrilhas organizadas --- ressalte-se, segundo avaliação da
alta instância do Ministério Público. Bom, um doutor defende a tese de que a
verdade é como a Lua, deve ter uma face visível e outra oculta; seu homônimo, o
doutor HC nunca defendeu tese, ou melhor, defende a tese de que o “mensalão” não
existiu, como se fosse possível não existirem a Lua e a verdade. São homônimos
não pela coincidência de siglas, mas pela coincidência de exegese da práxis
político-financeira para manutenção do poder.
O presente, o que é o presente senão o esbarrar do
passado com o futuro? A História ensina que, no passado, o nazismo foi um
sistema de gestão que assassinou e torturou milhões de pessoas. Ensina também
que o comunismo também assassinou e torturou outros milhões, quem sabe muito
mais do que seu alter ego. O que significa defender, preconizar, lutar e matar
pela implantação do nazismo ou do comunismo em um País como o Brasil? O que
significa empreender essa luta, sofrer-lhe as conseqüências --- enfatize-se: é
perversidade matar ou torturar, mesmo quando a cidadã ou o cidadão peleja pelo
nazicomunismo ---, e depois mentir, asseverando que a luta era contra a ordem
vigente? Que tal uma Comissão da Verdade, com o íntegro testemunho do Gustavo
Gorender, para retirar a máscara que engana e agride?
Inicialmente, esta missiva cogitou de três
vertentes da construção de um país ator global, mas discorreu sobre
generalidades de apenas uma delas: a indigência de líderes ou ausência de
estadistas em um período recente de nossa história, inferência que pode ser
extrapolada para o conjunto inteiro, ressalvadas exceções poucas. A revolução
transformadora --- que não precisa ser necessariamente armada ---, a
intelectualidade e também a liderança de Estado são temas a serem explorados em
nosso País, devendo a última ser tratada, não com a minha indignação, mas com
elevada qualificação. Os intelectuais da atualidade precisam gerar intelectuais
melhores para indicar os rumos de nossa evolução. Poucas organizações ou
instituições tem o potencial do Estadão para estimular os questionamentos,
propor os desafios, elaborar as provocações para que brasileiros com a requerida
condição intelectual, com coragem e integridade, e, sobretudo, isentos de
associação com a malversação do interesse coletivo e com ideologias
anestesiadoras, tratem da questão.
Parece razoável nutrir a expectativa de que, a
despeito da inequívoca simpatia do Estadão para com aqueles que
defendem a Comissão da Verdade restrita, a parcialidade resultante dessa atitude
possa ser atenuada para que continuemos a nos orgulhar do jornal e, sobretudo,
para que haja um despertar em nosso País da omissão de parcelas ponderáveis de
integrantes da política, da intelectualidade e da juventude, na construção de um
caminho autônomo e com independência em relação aos países poderosos da atual
conjuntura. E, especialmente, que faça germinar entre nós a decência, a ética e
a generosidade no bem servir.
Ou então conformemo-nos com o País que é um dos
cinco ou seis maiores produtores de automóveis no mundo, mas é o único dentre os
oito primeiros que não tem uma indústria de automóveis pertencente a nacionais e
com capital majoritariamente nacional; ou conformemo-nos com um País cujos
equipamentos fundamentais de suas Forças Armadas são majoritariamente de
concepção e produção estrangeira --- lembrando que não existe exemplo na
História que contemple povos vitoriosos com equipamentos militares concebidos e
fabricados fora das fronteiras nacionais; ou nos acovardemos diante da corrupção
endêmica, sistêmica, desenfreada e incalculável; ou aceitemos com passividade um
dos piores sistemas educacionais dos 60 países do mundo com melhor nível
organizacional --- a propósito, sou filho de família modesta, sou neto de negra
e bisneto de índia e não precisei da malfadada política de cotas para ingressar
em uma das melhores Faculdades de Engenharia do País, bastou apenas mérito e
escolas públicas satisfatórias; adicionalmente, jamais faltei a um dia de aula,
do ensino fundamental às três pós-graduações realizadas, em decorrência de
greve, não raro, entre nós, o direito universal de punir os menos aquinhoados,
com a bênção daqueles a quem não interessa um povo letrado ---; ou, entre tantas
outras aceitações, conformemo-nos com o fato de que a lista de livros mais
vendidos do Estadão, quando comparada com as suas congêneres no
mundo, é a que contém a maior densidade de autores estrangeiros.
Ou então vivamos em estado de catalepsia cerebral,
imaginando Comissões da Verdade, que a rigor deveriam ser alcunhadas Comissões
da Vergonha e Humilhação.
Não tenho qualquer constrangimento em ser acusado
de detentor de agenda negativa. Entendo que a faculdade de interpretar o todo é
um atributo fundamental do ser humano. Entendo que a capacidade de indignação é
essencial para que haja a prevalência da ética, da decência e da justiça. E, por
último e primacialmente importante, entendo que é fator evolutivo, com enorme
relevância, a disposição e coragem para vasculhar as entranhas de qualquer
organização, sociedade ou nação, para identificar-lhes as mazelas e construir
uma agenda voltada para a realidade sem práticas medievais, sem corrupção, sem
ausência de compromisso com Educação e sem meias verdades ou meias mentiras, não
importando quão doloroso seja. Enfim, um País com harmonia,
solidariedade, justiça e riqueza, com acesso assegurado a todos, à
luz de irrepreensível prevalência do mérito.
Diante de qualquer juízo contrário, entendo que não
devo, como Galileu, retratar-me, mas vale lembrar sua frase emblemática: “E
pur se muove” (“Não adianta me forçarem a mentir!”).
Atenciosamente,
Aléssio Ribeiro Souto
Cidadão, contribuinte
e eleitor
Militar da reserva
inexiste, de minha parte, outro pensamento que não o de, orgulhosamente, cumprimentá-lo e parabenizá-lo pelo texto.
ResponderExcluiro orgulho, dentre outros sentimentos, é por poder dizer às pessoas ser vc da minha turma da aman. mesmo que TuMMM abrace, também, a mim. hehehehe.
só faria uma pequena e única modificação no texto e de ordem estética: alteraria o tamanho da fonte - aumentando-a - na expressão: "Militar da reserva".
acho, “E pur se muove”, que ela vale mais do que qualquer das suas outras qualificações, citadas.
abçs fraternais.
Sérgio LOBO Rodrigues (preto lobo)
ps: devemos ser parentes, pois também tenho negro e índio em famílias passadas