Milhares de
pessoas, não muitos milhares, saíram às ruas ontem em 80 cidades brasileiras
cobrando celeridade do STF no julgamento do mensalão e protestando contra a
corrupção. “Celeridade” nem é uma palavra tão boa assim. No dia 6 de junho, a
entrevista que Roberto Jefferson concedeu à Folha denunciando o mensalão — à
boca pequena, a suspeita estava em todos os cantos e era amplamente comentada
por políticos e jornalistas — completa seis anos. Larápios que deveriam estar na
cadeia só engordaram, nesse tempo, a sua conta bancária e conspiraram em quartos
de hotel, explorando uma espécie de lenocínio contra as instituições e o estado
de direito.
Publiquei
algumas fotos das manifestações. Numa delas — e a imagem é recorrente em várias
cidades —, uma jovem aparece com o rosto pintado de verde e amarelo, remetendo
aos caras-pintadas de 1992, que concorreram para a queda de Fernando Collor. O
mesmo Collor que agora integrará a CPI do Cachoeira como força auxiliar do
PT.
Não,
senhores! O PT e os ditos movimentos sociais não participaram do protesto, é
claro! Eles agora são poder. Em 1992, estavam na oposição. Para petistas e
assemelhados, denunciar corruptos quando se está na oposição é mister;
protegê-los, quando se está no governo, é um dever. Para os petistas, o mal não
está na corrupção em si, mas em quem a pratica. No adversário, é uma falha
grave; nos companheiros, é apenas uma ação tática — ou estratégica, a depender
do teórico — para combater “a direita” e “os conservadores”.
Aquela moça
de cara pintada nos lembra que Lindberg Farias, por exemplo, presidente da UNE
em 1992, passados 20 anos, é senador do Rio pelo PT. Por que ele engrossaria
agora uma passeata em favor da punição dos mensaleiros? José Dirceu, um dos mais
buliçosos articuladores dos movimentos — JUSTIFICADOS, É BOM QUE FIQUE CLARO! —
em favor do impeachment de Collor, está empenhado agora em revistar a história e
negar o óbvio: os crimes cometidos pelos mensaleiros e pelo chefe da
quadrilha.
Por isso, os
petistas e os movimentos sociais que eles controlam não vão às praças. Ao
contrário. Quando Dirceu é chamado a falar em fóruns de esquerdistas, alguns
deles promovidos, direta ou indiretamente, com dinheiro público, a saudação é
outra: “José Dirceu guerreiro/ herói do povo brasileiro”. O PT tenta
deixar um legado na política brasileira: a corrupção praticada por esquerdistas
é apenas um ato de resistência. Antes que avance, uma consideração importante:
não pensem que o partido inova ao fazer tal avaliação. Essa amoralidade
constitui a essência do próprio pensamento de esquerda, revelada, já comentei
aqui, de forma cristalina por Sartre na peça “As Mãos Sujas”. Tentem encontrar
num sebo e leiam (depois ele virou um comunista cretino). Ali está a essência de
como as esquerdas, mesmo a “melhor” esquerda, lidam com o crime. Para elas, o
que determina se uma ação é criminosa ou não são os seus objetivos. Se servirem
ao que chamam “libertação dos oprimidos”, tudo é permitido — e, pior do que
isso, tudo passa a ser necessário, desde que assim decida o partido. Não é
diferente do fascismo — só que este fala em nome do “estado”. Igualam-se no ódio
à democracia e ao liberalismo.
Um
pouco de históriaNão sei para onde caminha a sociedade brasileira —
não tenho bola de cristal. Os que me leem desde a revista República (e
o PT ainda era oposição) ou, um pouco mais tarde, desde Primeira
Leitura, sabem que nunca fui exatamente otimista. Há muitos anos me
incomoda a agressão sistemática promovida por forças do establishment (e o PT já
era establishment quando oposição) contra as instituições. Em 2003, fui
convidado a falar num seminário promovido pelo PSDB. Discutia-se qualquer coisa
como “os caminhos da oposição”. Cheguei a escrever um artigo para a revista da
Fundação Teotônio Vilela. Afirmei então, para espanto (e discordância) de muitos
tucanos presentes — nunca fui ligado ao PSDB, como sabe ao partido, porque
repudio sua esquerdofilia —, que os petistas tendiam a fagocitar (um
neologismo derivado do substantivo “fagocitose”) instituições, partidos
conservadores, movimentos sociais, entidades de classe trabalhadoras e
patronais… Lembro-me de certo espanto dos presentes. Alguns me olhavam
indagando: “Quem é esse paranoico aí?’ Pois é…
O meu
antípoda da tarde foi o sociólogo Sérgio Abranches, que tranquilizou a todos
afirmando que as virtudes do “presidencialismo de coalizão” impediriam aventuras
autoritárias do PT. A minha tese não era — e nunca foi — a de que o petistas tentariam um
golpe bolchevista (sempre achei isso uma grossa bobagem), mas a de que eles
dariam um jeito de tornar irrelevantes os controles e filtros democráticos,
alterando-lhes os códigos. E falei bastante sobre Antonio Gramsci. A maioria dos
tucanos preferiu, visivelmente, a mirada otimista de Abranches. Talvez ela lhes
parecesse menos trabalhosa do que anunciava a minha análise. Lembro-me da
satisfação de alguns ali quando diziam: “Mas os petistas estão governando com o
nosso programa, com os nossos marcos econômicos!”. E eu tentei: “Sei disso! Por
isso mesmo, a coisa é mais séria do que parece! Eles estão sequestrando os seu
valores e suas conquistas”. Em vão!
O
responsável mais direto por eu ter sido convidado para aquele
seminário e única liderança que concordou comigo
era o então deputado federal tucano (e depois secretário-geral do partido por um
tempo) Eduardo Paes, atual prefeito do Rio pelo PMDB. Paes, reitero, endossou a
minha constatação de que o petismo estava se articulando como força hegemônica
para fagocitar inclusive lideranças da oposição!!! O prefeito poderia
dar seu testemunho se fosse o caso. Sabe que falo a verdade. Paes fez depois as
suas escolhas, e eu continuei com as minhas. Ambos sabíamos, e louvo-lhe a
perspicácia, para onde as coisas estavam caminhando, não é
mesmo?
CPI
do Cachoeira, mensalão etcOs primeiros dados que vazaram da
investigação da PF dão conta de que o bicheiro Carlinhos Cachoeira está muito
mais enfronhado no estado brasileiro do que se supunha. Sozinha, a Construtora
Delta pode fazer tremer a República. A CPI seria, sim, um bom momento e um bom
lugar para desbaratar o esquema criminoso. Mas já dá para saber que isso não vai
acontecer. Ao contrário: os que se moveram, inicialmente, em favor da comissão
de inquérito não querem fulminar o esquema criminoso. Ao contrário: usuários e
usurários da sem-vergonhice, pretendem apenas fazer valer a maioria de votos de
que dispõem na comissão (25 a 6) para intimidar a oposição e para demonstrar que
a política brasileira é mesmo essencialmente suja — logo, os crimes do mensalão,
que hoje eles negam (contra todas as evidências), ainda que tenham existido, não
teriam sido excepcionais.
Vocês são
testemunhas de que este blog foi pioneiro em chamar a atenção para essa
pilantragem, ainda no dia 1º de abril. Aí Lula (por intermédio de Paulo
Okamoto), Rui Falcão e o próprio Dirceu anunciaram a intenção de usar a CPI do
Cachoeira para tentar desmoralizar a peça acusatória do mensalão. Como a coisa
pegou mal, tentaram recuar. Mas, vocês sabem, eu não sou petista nem gosto do
PT. Assim, é razoável que alguns duvidem do que escrevo a respeito das intenções
desses patriotas. Então por que não acreditar no que escreve Kennedy Alencar,
insuspeito de antipetismo ou de isenção no que diz respeito ao partido?
Leiam:“Quem conversou recentemente com o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, com o ex-ministro José Dirceu e com cardeais petistas
obteve algumas pistas que ajudam a explicar a origem dessa CPI. Em resumo, Lula
e Dirceu não pretendem aceitar que o mensalão passe para a história como o
escândalo de corrupção mais grave dos 512 anos de existência do Brasil.
Lula e Dirceu estariam dispostos “a dividir o país”, nas palavras de um cardeal petista, para evitar que o mensalão seja catalogado como o maior caso de corrupção da história. Isso significa mobilizar os setores mais organizados da sociedade que defendem o PT para uma batalha nas ruas, nas redes sociais e nas articulações em Brasília.”
Lula e Dirceu estariam dispostos “a dividir o país”, nas palavras de um cardeal petista, para evitar que o mensalão seja catalogado como o maior caso de corrupção da história. Isso significa mobilizar os setores mais organizados da sociedade que defendem o PT para uma batalha nas ruas, nas redes sociais e nas articulações em Brasília.”
Huuummm…
Quem terá conversado com toda essa gente, hein? Kennedy certamente tem menos
dificuldades para falar hoje com Lula do que quando era, oficialmente, seu
assessor de imprensa. Se ele diz que o objetivo desses fidalgos da República é
só livrar a cara dos mensaleiros, então convém acreditar. As afirmações que fiz
no dia 1º de abril não eram só um delírio de um notório crítico do PT. Elas
expressavam os delírios daqueles petistas. Não precisei falar com Lula, Dirceu e
os cardeais para concluir isso precocemente. A lógica continua a ser uma boa
fonte do analista. Com frequência, é melhor do que os políticos, que sempre
tentam engabelar jornalistas. A lógica não engabela ninguém.
FascistoidesO fascismo tem
características múltiplas, muitas faces e cor local. O italiano foi diferente do
alemão, que foi diferente do português, que foi diferente do espanhol, que foi
diferente do da República de Vichy… Com um núcleo comum de valores, cada qual
teve as suas especificidades. Uma das características comuns foi o estado de
permanente mobilização da sociedade contra “eles”, os “inimigos” — fossem
chamados de “judeus”, “comunistas”, “imorais”, “liberais”… Essa sociedade
permanentemente crispada pelo estado, estimulada a reivindicar seus direitos
contra “eles” — nunca contra o estado —, costumava ir às ruas fazer protestos,
exigindo reparações. Vale dizer: uma das características essenciais de
qualquer fascismo se revela quando movimentos oficialistas pretendem tomar o
espaço da contestação. Ou por outra: você está num regime
fascista ou fascistóide quando forças da ordem tomam o lugar das forças de
repúdio à ordem.
Não é isso o
que vemos hoje? A canalha pode não estar nas ruas, mas se organiza na Internet,
aparelhando sites dos grandes veículos de comunicação, as redes sociais, os
ditos “movimentos sociais”… Incluem-se no grupo, é evidente os subjornalistas de
aluguel, sustentados pelo governo ou pelas estatais. Esses vagabundos fazem o
protesto a favor do establishment, a favor do poder, ainda que contra a noção
mais comezinha de moralidade. E daí?
“O mensalão
nunca existiu”, eles sustentam; tudo invenção da imprensa em conluio com
Carlinhos Cachoeira. Muito bem… Mas o que o bicheiro tem a ver com a dinheirama
movimentada por Marcos Valério ou com o pagamento a Duda Mendonça feito no
exterior? Nada! Kennedy nos ensina:“Quando fala em ‘farsa do mensalão’, o
ex-presidente busca relativizar o que ele mesmo sabe ser um desvio de conduta
grave de uma legenda que nasceu se dizendo defensora da ética na política. Lula
já disse que o PT errou, mas tenta minimizar o episódio, dando a ele ar de
financiamento eleitoral e partidário ilegal.”Eu diria que o
próprio Lula consegue ser mais severo com o PT do que o autor do texto. Eu diria
que a expressão “financiamento eleitoral e partidário ilegal” consegue ser mais
grave do as palavras cândidas escolhidas pelo articulista para definir o
mensalão: “desvio de conduta
grave”. Imaginem! Se você cruzar com um mensaleiro na rua
ou no aeroporto, não hesite em ser duro com ele: “Você não passa de um sujeito
com a conduta desviada!” No caso de ser um estuprador compulsivo, seja
fulminante: “Sua conduta desvia da norma culta!” Seja
implacável!!
A propósito:
se Lula sabe que o mensalão foi um “desvio de conduta grave”, o que isso tem a
ver com as outras picaretagens de Cachoeira? Em que estas minimizariam aquelas?
A pergunta não tem resposta.
Essa
movimentação a soldo na Internet, especialmente aquela que se faz contra a
imprensa — como se as comprovadas malandragens de petistas fossem uma invenção
do jornalismo em associação com Cachoeira —, é só uma das faces dos
fascistóides. Sua expressão mais visível é a mobilização a favor da corrupção e
de corruptos.
Os protestos
de ontem em favor do julgamento do mensalão mostram que a sociedade ainda
respira.
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