Arnaldo Jabor – O GLOBO 17 Abr 12
Esse mar de
lama pode nos purificar
Os corruptos ajudam-nos a descobrir o país. Há sete anos, Roberto
Jefferson nos abriu a cortina do mensalão.
Agora, com a dupla personalidade
de Demóstenes Torres, descortinamos rios e florestas e a imensa paisagem de
Cachoeira.
Jefferson teve uma importância ideológica. Cachoeira é uma
inovação sociológica.
Cachoeira é uma aula magna de ciência politica sobre o Sistema do
país.
Vamos aprender
muito com essa crise. É um esplendoroso universo de fatos, de gestos, de
caras, de palavras que eclodiram diante de nossos olhos nas últimas semanas.
Meu Deus, que riqueza, que profusão de cores e ritmos em nossa consciência
política! Que fartura de novidades da sordidez social, tão fecunda quanto a
beleza de nossas matas, cachoeiras, várzeas e flores.
Roberto Jefferson denunciou os
bolchevistas no poder, os corruptos que roubavam por "bons motivos", pelo
"bem do povo", na base dos "fins que justificam os meios". E, assim,
defenestrou a gangue de netinhos de Lenin que cercavam o Lula, que, com sua
imensa sorte, se livrou dos manda-chuvas que o dominavam. Cachoeira é uma
alegoria viva do patrimonialismo, a desgraça secular que devasta a História
de nosso país. Sarney também seria "didático", mas nada gruda nele, em seu
terno de teflon; no entanto, quem estudasse sua vida entenderia o retrato
perfeito do atraso brasileiro dos últimos 50 anos.
Cachoeira é a verdade brasileira
explícita, é o retrato do adultério permanente entre a coisa pública e
privada, aperfeiçoado nos últimos dez anos, graças à maior invenção de Lula:
a "ingovernabilidade".
Cachoeira é um acidente que rompeu
a lisa aparência da "normalidade" oficial do país. Sempre soubemos que os
negócios entre governo e iniciativa privada vêm envenenados pelas eternas
malandragens: invenção de despesas inúteis (como as lanchas do Ministério da
Pesca), superfaturamento de compras, divisão de propinas, enfrentamento
descarado de flagrantes, porque perder a dignidade vale a pena, se a grana
for boa, cabeça erguida negando tudo, uns meses de humilhações ignoradas pelo
cinismo e pela confiança de que a Justiça cega, surda e muda vai salvá-los.
De resto, com a grana na "cumbuca", as feridas cicatrizam logo.
O governo do PT desmoralizou o
escândalo, e Cachoeira é o monumento que Lula esculpiu. Lula inventou a
ingovernabilidade em seu proveito pessoal. Não foi nem por estratégia
política por um fim "maior" - foi só para ele.
Achávamos a corrupção uma exceção,
um pecado, mas hoje vemos que o PT transformou a corrupção em uma forma de
governo, em um instrumento de trabalho. A corrupção pública e privada é muito
mais grave e lesiva que o tráfico de drogas.
Lula teve a esperteza de usar
nossa anomalia secular em projeto de governo.
Essa foi a realização mais
profunda do governo Lula: o escancaramento didático do patrimonialismo
burguês e o desenho de um novo e "peronista" patrimonialismo de Estado.
Quando o paladino da
moralidade Demóstenes ficou nu, foi uma mão na roda para dezenas de ladrões
que moram no Congresso: "Se ele também rouba, vamos usá-lo como um Omo, um
sabão em pó para nos lavar, vamos nos esconder atrás dele, vamos expor nosso
escândalo por seu comportamento e assim, seremos esquecidos!"
Os maiores assaltantes se
horrorizaram, com boquinha de nojo e olhos em alvo: "Meu Deus... como ele
pôde fazer isso?"
Usam-no como um oportuno bode
expiatório, mas ele é mais um "boi de piranha" tardio, que vai na frente para
a boiada se lavar atrás.
Demóstenes foi uma isca. O PT
inventou a isca e foi o primeiro a mordê-la.
"Ótimo!" - berrou o famoso
estalinista Rui Falcão. - "Agora vamos revelar a farsa do mensalão!" -, no
mesmo tom em que o assassino iraniano disse que não houve Holocausto. "Não
houve o mensalão; foi a mídia que inventou, porque está comprada pela
oposição!" Os neototalitários não desistem da repressão à imprensa
democrática...
E foi o
Lula que estimulou a CPI, mesmo prejudicando o governo de Dilma, que ele usa
como faxineira também das performances midiáticas que cometeu em seu governo.
Dilma está aborrecida. Ela não concorda que as investigações possam servir
para que o Partido se vingue dos meios de comunicação e não quer paralisar o
Congresso. Mas Lula não liga. "Ela que se vire..." - ele pensa em seu
egoísmo, secretamente até querendo que ela se dane, para ele voltar em 14.
Agora, todo mundo está com medo, além da presidente. O PT está receoso -
talvez vagamente arrependido. Pode voltar tudo: aloprados, caixas
2 falsas, a
volta de Jefferson, Celso Daniel, tantas coisinhas miúdas... A CPI é um poço
sem fundo. O PMDB, liderado pelo comandante do atraso Sarney, também está com
medo. A velha raposa foi contra, pois sabe que merda não tem bússola e pode
espirrar neles. Vejam o pânico de presidir o Conselho de Ética, conselho que
tem membros com graves problema na Justiça. Se bem que é maravilhoso o povo
saber que Renan, Juca, Humberto Alves, Gim Argello, Collor serão os "catões",
os puros defensores da decência... Não é sublime tudo isso? Nunca antes em
nossa História alianças tão espúrias tiveram o condão de nos ensinar tanto
sobre o Brasil. A cada dia, nos tornamos mais sábios, mais cultos sobre esta
grande chácara de oligarquias. E eu estou otimista. Acho que tudo que ocorre
vai nos ensinar muito. Há qualquer coisa de novo nesta imundície. O mundo
atual demanda um pouco mais de decência política. Cachoeira, Jefferson,
Durval Barbosa nos ensinam muito. Estamos progredindo, pois aparece mais a
secular engrenagem latrinária que funciona abaixo dos esgotos da pátria. A
verdade está nos intestinos da política.
Mas o país é tão frágil, tão
dependente de acasos, que vivemos com o suspense do julgamento do mensalão
pelo STF.
Se o ministro
Ricardo Lewandowski não terminar sua lenta leitura do processo, nada
acontecerá, e a Justiça estará desmoralizada para sempre.
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