Do exército surgiu a nação e com o exército
nasceu o estado, respectivamente, a representação
e a organização da sociedade. Hoje, nesta
parte do mundo onde tais verdades estão sedimentadas pela História, nação e
estado parecem ser noções cada vez mais abstratas à maioria das pessoas, pois é
como parte de uma sociedade que elas se entendem, antes da solidariedade da
nação e a despeito da onipresença do estado. No entanto, é impossível conceber a existência
da sociedade sem as coordenadas de tempo e espaço da nação, tampouco sem a
instrumentalização do estado, a primeira, condicionante histórica e a segunda, exigência
política.
Ainda é tênue em nossa história social a
consciência que “do fim do século XVI em diante o Brasil autocolonizou-se,
defendendo-se por si das agressões estrangeiras” (FREYRE, 2003, p.339). Durante
a Insurreição Pernambucana, ao edital holandês que mandava “todas as mulheres dos
moradores que se haviam retirado com o governador João Fernandes Vieira para os
matos, e andavam em campanha [...] fossem em busca de seus maridos, com seus
filhos e filhas, sob pena de morte a sangue fogo” (SANTIAGO, 2004, p.234)
respondeu o próprio Vieira, ordenando
que “nenhuma mulher nem outra qualquer pessoa se saia de sua casa, e aguarde
todo o rigor que o inimigo lhe promete fazer, que pelo primeiro que começar em
vingança lhe não hei de dar quartel a pessoa alguma de sua jurisdição [...]
lhes hei de pôr o fogo e sangue.” (Ibid.). Foi o repto para a dramática vitória
do Monte das Tabocas (3 de agosto de 1645), que conduziria à afirmação da
nacionalidade brasílica nos Montes Guararapes, alguns anos depois.
Cerca de cinquenta anos decorreriam da
expulsão do invasor do Nordeste até a inauguração da frente de luta, no Prata,
que perduraria durante o século XVIII e boa parte do XIX, forjando no
continente de São Pedro uma cultura nova, mestiça, de colonos, soldados e
vaqueiros, tributária de muitas geografias, açorianas, brasilienses,
portuguesas e autóctone. Sob o signo dessa guerra endêmica, floresceu aí uma
sociedade que fixou os limites meridionais da brasilidade, viu nascer o estado
nacional e se confundiu com o exército numa tradição vitoriosa de preservação
do patrimônio territorial brasileiro. Foi desse desenvolvimento histórico que
surgiu a maioria dos grandes heróis militares do Brasil, o maior deles Luís
Alves de Lima e Silva, patrono do Exército brasileiro, cujo título
nobiliárquico serviria ao imaginário nacional para sintetizar a ideia de correção,
disciplina e patriotismo na palavra “caxias”, hoje infelizmente em desuso.
O século XX assistiu o Exército enfrentar
os desafios de ser um elemento de modernização da sociedade brasileira e de se
transformar numa força de combate reconhecidamente eficaz. A participação da
Força Expedicionária Brasileira, entre setembro de 1944 e abril de 1945, num
dos teatros de operações mais difíceis da frente ocidental durante a Segunda
Guerra Mundial foi um ponto marcante dessa trajetória única do Exército
brasileiro. Não foi pequeno o impacto na sociedade brasileira da participação
direta de milhares de pessoas no conflito na Europa, inserindo, quando de seu
retorno ao país, novas ideias, técnicas e visões modernizantes. Militarmente, a
participação efetiva e exitosa no conflito dotou o Brasil de uma força equipada
e com experiência de combate, restaurando-lhe a hegemonia militar no continente e concedendo à diplomacia
brasileira o necessário prestígio para o protagonismo internacional que o país
aspirava.
Foi também o prestígio, mas perante a
sociedade brasileira, que aspirou o Exército a mais uma intervenção no cenário
político nacional, em 1964. Da articulação com as elites civis para conceder ao
país a oportunidade de um ciclo de
reformas que o modernizasse estruturalmente, as lideranças do Exército fizeram
prevalecer o que preconizara o General Góis Monteiro trinta anos antes: a
política do Exército e não a política no Exército. A inauguração da atual República em 1985 foi
a única que não se deu por uma ruptura institucional, consumando a revolução
para acabar com todas a revoluções.
O compromisso repetido perante a Bandeira
há quase um século é a expressão inegável da ligação definitiva entre a
sociedade brasileira e o seu exército, uma relação plasmada na formação e
evolução política da nação:
“Incorporando-me ao Exercito tomo o compromisso de cumprir rigorosamente as ordens que receber das autoridades a que
estiver subordinado, de respeitar os
superiores hierarchicos, de tratar com affeição
os irmãos d’arma e com bondade os subordinados, de dedicar-me inteiramente ao
serviço da Patria, cuja honra, integridade e instituições defenderei, com o sacrifício da própria vida”(PFEIL, KLINGER
e RODRIGUES, 1919, p. 11, o grifo é nosso)
*
Historiador. Membro do CPE da UFJF, pesquisador do CEBRI e responsável pela
Clio Consultoria Histórica. Autor do livro “Os Pilares da Discórdia”.
Referências
FREYRE, Gilberto. Casa-grande
& senzala: formação da família brasileira sobre o regime da economia
patriarcal. 47 ed. Recife: Editora Global, 2003.
PFEIL, João Eduardo, KLINGER, João Bertholdo e
RODRIGUES, Apollonio da Fontoura. Manual
do Artilheiro de Campanha, 1 v. Rio de Janeiro: Papelaria Macedo, 1919.
SANTIAGO, Diogo Lopes de. História da Guerra de Pernambuco: e feitos memoráveis do mestre de
campo João Fernandes Vieira herói digno da eterna memória, primeiro aclamador
da guerra. Recife: CEPE, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário