Quando o Brasil
comemorou os 350 anos da 1ª batalha de Guararapes, a Academia Militar das
Agulhas Negras (AMAN) atendeu a uma solicitação insólita de ilustre
personalidade que se preparava para visitá-la. Pedia-se, nada mais nada menos,
que se discriminasse o efetivo de cadetes por "raça". Havia bons motivos para o
estranhamento. Uma geração antes, nos anos 70, um cadete sistematicamente
chamado de "japonês" em sala de aula, em dada ocasião, levantou-se e, na posição
de sentido, respondeu a seu professor: Coronel, eu sou brasileiro! O silêncio
que se seguiu respondeu muito, por muito tempo.
Os integrantes das turmas da AMAN se distribuem
ao longo de todo espectro social e geografia do País, do filho da lavadeira ao
do general, vindos dos melhores bairros das principais cidades, de humildes
periferias e esquecidos sertões brasileiros.
Trabalho, disciplina e rígido código de valores
se encarregam de conceder a cada um o seu lugar, ou até nenhum. Episódios dessa
vida de risco inerente à condição de soldado permitem demonstrações de coragem e
desprendimento que eclipsam qualquer diferença de origem.
Ali a realidade é militar, como se espera da
escola de formação de oficiais combatentes do Exército de um país grande, forte
e multiétnico que, por vezes, parece não ter consciência disso, mas conta que os
seus homens de armas não se esqueçam disso.
Alguma coisa havia mudado. O quê? Nos anos 1980
surgiram especulações sobre uma "proletarização" do oficialato do Exército, em
meio ao mal-estar provocado pela crescente evasão de cadetes atribuída aos
baixos vencimentos. Os novos cadetes pareciam resilientes à disciplina e se
remetiam às dezenas, à segunda época de Português, remetendo-se também a muitas
horas de aulas extra.
Sábios acadêmicos fizeram prospectivas acerca
da "mudança" do Exército e em pouco tempo surgiu a tese de uma crise existencial
no Exército. Um pouco de estatística mostrou uma realidade mais simples. A
origem dos cadetes por estamento social era exatamente a mesma da dos anos 1950,
não havia nenhum sinal de esmaecimento do entusiasmo dos jovens oficiais pelos
cursos de combate e todos, independentemente de origem, aderiam aos valores e
padrões de vida da classe média. Não fora o Exército que entrara em crise, mas
sim a sociedade brasileira.
Há tempos o núcleo marxista da sociologia
brasileira trabalha na transformação em mito do sentimento de unidade racial do
País, o passo indispensável
à sua desconstrução que passa pela crítica e
menosprezo ao maior sociólogo do Brasil, o insuperável Gilberto Freyre. Já o
revisionismo histórico marxista tem atuação mais ampla e difusa, alcançando
todos os fatos, acontecimentos e personagens úteis à releitura que intenta do
passado e da atualidade brasileira.
E nada parece alterar essa fé ideológica, nem a
contrição de inteligências meridianas que têm um papel na História do Brasil,
nem o espetáculo oferecido ao mundo pela Banda do Corpo de Fuzileiros Navais e
pela Academia Militar na Champs Elysées em 2005, e muito menos a realidade de o
Exército brasileiro possuir diversos oficiais-generais da mais escura tez ou
mulatos que, como muitos outros profissionais de diversas origens étnicas,
atingiram o topo de suas carreiras exclusivamente pelos seus méritos.
É um equívoco pretender em futuro incerto que
os militares brasileiros sejam promovidos não pelo que eles são, mas sim pelo
que a ideologia pretenda que sejam. É um absurdo que para tanto se usem
comparações com sociedades que pouco ou nada têm a ver com a nossa, ou se tome
como modelo o país que há três gerações não permitiu que um só homem de cor
tomasse parte do assalto às praias da Normandia. E é um desastre a omissão da
classe política e da sociedade perante a apropriação ideológica da Defesa
Nacional que inclui a perspectiva sectária e controversa do Plano Nacional de
Direitos Humanos 3 em um documento de Estado, o Livro Branco de Defesa
Nacional.
Como a cor da pele, o Brasil prescinde dessas
armas. Cotas servem à ideologia, só isso.
Sérgio Paulo Muniz Costa é historiador,
membro do CPE da UFJF e pesquisador de Segurança e Defesa do CEBRI. Foi adjunto
da Subseção de Medidas de Aprendizagem, comandante da 2ª Bateria de Cadetes,
chefe da Seção de Ensino de Geografia e História Militar e coordenador da
Modernização do Ensino da AMAN, onde serviu por duas vezes como instrutor
nomeado.