Rodrigo Constantino
“Você não pode viver além de seus meios no longo prazo”, foi a mensagem de Angela Merkel em dezembro de 2008, na província de Suábia, sul da Alemanha. Ela falaria sobre Verantwortung, a palavra alemã para “responsabilidade”. O discurso tinha forte conotação simbólica, uma vez que o mundo estava no auge da crise de crédito após o colapso do Lehman Brothers. O local também não foi escolhido por acaso: a Suábia é conhecida na Alemanha pela frugalidade quase obsessiva de suas donas de casa, responsáveis ao extremo com as finanças domésticas.
A governante alemã estava passando uma mensagem aos alemães e ao mundo. Seu governo não iria participar dos resgates bilionários como outros governos. Após muitos anos de vergonha pelo Holocausto e culpa pelo nazismo, o que diluiu ao extremo o senso de patriotismo dos alemães, era chegada a hora de resgatar o orgulho nacional e dar lições morais aos povos irresponsáveis em suas finanças. A Alemanha, um colosso econômico, o segundo maior exportador do mundo (sendo que seus produtos têm alto valor agregado, ao contrário dos chineses, que dependem de farta mão-de-obra barata), com superávit na balança de pagamentos, finalmente poderia falar mais grosso com seus vizinhos.
Durante a criação do euro, muitos alemães foram contrários ao experimento. Eles temiam que a moeda comum acabasse subsidiando o que eles enxergavam como preguiçosos do Mediterrâneo. Além disso, morriam de medo de terminar com uma moeda fraca, inflacionária. A experiência catastrófica na República de Weimar, em parte responsável pela ascensão do nazismo, deixou os alemães apavorados com qualquer possibilidade de frouxidão monetária. A ortodoxia do Bundesbank seria vista como crucial para a prosperidade econômica.
Merkel chegou a apontar a excessiva quantidade de dinheiro barato como principal causa da crise americana. No Parlamento, em 2008, ela se mostrou bastante preocupada com as medidas tomadas pelo governo americano para conter a crise, alegando que mais dinheiro barato e dívida iriam reforçar a tendência anterior e criar uma nova crise em cinco anos. Foi profético seu alerta. Mas bastaram dois anos apenas. E o epicentro da nova crise seria a própria Europa desta vez.
Para compreender o respeito que o povo alemão tem pelo Bundesbank, assim como a aversão pelas “soluções” keynesianas, parece interessante regressar um pouco no tempo. Como já mencionado, a República de Weimar viveu uma experiência caótica de hiperinflação, o que contribuiu para a chegada dos nazistas ao poder. Durante o governo nazista, o banco central, Reichsbank, que tinha independência no papel, acabou totalmente controlado pelo Füher. Em 1939, seis diretores foram demitidos por objetarem a magnitude de empréstimos que Hitler fazia para financiar a guerra. A Alemanha não tinha uma moeda sólida por décadas.
Em 1948, os Aliados que comandavam a parte ocidental da Alemanha agora dividida criaram um novo banco central, o Bank Deutscher Länder, que imprimiu a nova moeda deutschmark. Esta transição abriu caminho para a criação do Bundesbank, em 1957. O país iria viver seu “milagre econômico”, que deixaria o mundo perplexo. Após a destruição de boa parte de sua indústria e a perda de milhões de jovens, a Alemanha ocidental ingressaria em uma trajetória de crescimento que faria dela o país mais rico da Europa. O que explica este feito histórico?
Culturalmente, os alemães sempre foram um povo trabalhador. Mas se sempre foi assim, então isto não pode explicar a mudança pós-guerra. A ajuda bilionária do Plano Marshall americano deu sua colaboração, mas não explica tudo (basta pensar no Iraque). Para Matthew Lynn, autor de Bust: Greece, The Euro, And The Soverign Debt Crisis, a melhor explicação se encontra no triunfo intelectual da época. Boa parte do mundo pós-guerra tinha aderido a uma mistura de keynesianismo e planejamento central. Exceto a Alemanha. Após os desastrosos anos de Hitler, eles sabiam exatamente o que este estado corporativista era. Em seu país ele era chamado de nacional-socialismo.*
Conforme explica Lynn, um pequeno grupo de intelectuais alemães, liderados pelos economistas Walter Eucken e Wilhelm Ropke, opôs-se ao aumento da socialização e do planejamento central da economia nazista. Eles desenvolveram o que ficou conhecido como ordoliberalismo, uma doutrina que enfatizava a estabilidade monetária, a propriedade privada, a livre entrada aos mercados e, acima de tudo, a manutenção de acirrada concorrência entre as empresas. Ao contrário dos liberais clássicos, eles achavam que o estado tinha um papel importante a cumprir, evitando oligopólios e estimulando a competição. O maior inimigo era a inflação, que os anos 1920 ensinaram ser um câncer insidioso que destrói a sociedade.
A mentalidade que ganhava o país não ficou livre de críticas. Muitos membros do governo federal condenavam a abordagem muito deflacionária do novo banco central. Vários críticos keynesianos argumentavam que o Bundesbank era obcecado demais com a inflação e fazia pouco para estimular o crescimento. No final dos anos 1950, pouco depois de sua criação, chegou a ser proposto o término da independência do banco central. Mas a idéia de um banco central como verdadeiro guardião da moeda estava enraizada demais. O Bundesbank venceu a batalha intelectual, e foi um pilar fundamental do “milagre” econômico. Enquanto vários outros países desvalorizavam suas moedas, o marco alemão nunca precisou ser desvalorizado pelo Bundesbank. O resultado foi uma das menores taxas de inflação da OECD por longo período.
Era este ícone do “milagre” alemão que estava em xeque com a criação do euro. Alguns economistas chegaram a entrar na justiça contra sua criação, alegando inconstitucionalidade, uma vez que a moeda comum poderia perder a estabilidade, já que os países membros eram muito diferentes entre si e os mecanismos de controle da nova moeda muito frágeis. Para estes críticos, o euro iria, com o tempo, abolir a independência alemã. Seu questionamento jurídico foi derrubado, e Helmut Schmidt chegou a descrever tais economistas como “idiotas sem senso de história”. O tempo costuma ser amigo da razão.
Os alemães, de forma geral, compartilham esta crença na ortodoxia monetária e na responsabilidade fiscal. Durante a crise grega, o ministro das Fianças alemão, Wolfgang Schäuble, foi direto ao ponto: “Enquanto os governantes americanos gostam de focar em medidas corretivas de curto prazo, nós tomamos a visão de longo prazo e, portanto, estamos mais preocupados com as implicações de excessivos déficits e os perigos de elevada inflação”. A aversão às aventuras monetárias está na raiz da história alemã moderna, assim como o apreço pelo trabalho duro e aperto das despesas, especialmente se alimentadas pelo crédito fácil.
O euro foi um projeto político que teve como alvo lidar com a “questão alemã”. Um país com 80 milhões de habitantes, mais rico que o restante, e com forte nacionalismo era sempre uma ameaça para os vizinhos. A união monetária iria diluir a Alemanha dentro de um grupo maior, com evidente perda de poder relativo dos alemães. Este acordo foi aceito pelos alemães graças ao legado de culpa do nazismo. A tese de Lynn é que esta culpa está desaparecendo. As novas gerações não viveram a guerra, e sentem orgulho do destaque alemão frente aos vizinhos. A Copa de 2006 mostrou um patriotismo resgatado nas ruas da Alemanha. Isso representa um risco para o euro, pois a união depende basicamente da aceitação por parte dos alemães de um acordo nada justo: eles pagam a conta, enquanto os burocratas em Bruxelas transferem os recursos para outros países.
Uma Alemanha mais “normal”, livre da culpa do passado, pode começar a questionar se deve realmente subsidiar o restante da União Europeia por toda a eternidade. Não será fácil responder na afirmativa esta pergunta. Por hora, a pressão tem sido grande para que a Alemanha aceite transferir recursos para gregos, portugueses, italianos, espanhóis e até franceses. Sarkozy chegou a utilizar abertamente a “cartada bélica”, afirmando que o fracasso do euro jogaria a região em guerra novamente. Angela Merkel acusou o golpe e repetiu o discurso em casa. A elite alemã, que ganhou bastante com o euro, endossa quase qualquer esforço para preservar a moeda. Mas até quando o povo alemão vai tolerar esse acordo? A Alemanha é uma democracia, não vamos esquecer. A pergunta, portanto, é de total importância: até quando a Alemanha agüenta bancar seus vizinhos?
* Para alguns, pode parecer estranho misturar Keynes e Hitler. Mas o próprio Keynes escreveu no prefácio da edição alemã da Teoria Geral: "[A] teoria da produção como um todo, que é o que este livro tenciona oferecer, se adapta muito mais facilmente às condições de um estado totalitário, e não às condições de livre concorrência e uma grande medida de laissez-faire".
“Você não pode viver além de seus meios no longo prazo”, foi a mensagem de Angela Merkel em dezembro de 2008, na província de Suábia, sul da Alemanha. Ela falaria sobre Verantwortung, a palavra alemã para “responsabilidade”. O discurso tinha forte conotação simbólica, uma vez que o mundo estava no auge da crise de crédito após o colapso do Lehman Brothers. O local também não foi escolhido por acaso: a Suábia é conhecida na Alemanha pela frugalidade quase obsessiva de suas donas de casa, responsáveis ao extremo com as finanças domésticas.
A governante alemã estava passando uma mensagem aos alemães e ao mundo. Seu governo não iria participar dos resgates bilionários como outros governos. Após muitos anos de vergonha pelo Holocausto e culpa pelo nazismo, o que diluiu ao extremo o senso de patriotismo dos alemães, era chegada a hora de resgatar o orgulho nacional e dar lições morais aos povos irresponsáveis em suas finanças. A Alemanha, um colosso econômico, o segundo maior exportador do mundo (sendo que seus produtos têm alto valor agregado, ao contrário dos chineses, que dependem de farta mão-de-obra barata), com superávit na balança de pagamentos, finalmente poderia falar mais grosso com seus vizinhos.
Durante a criação do euro, muitos alemães foram contrários ao experimento. Eles temiam que a moeda comum acabasse subsidiando o que eles enxergavam como preguiçosos do Mediterrâneo. Além disso, morriam de medo de terminar com uma moeda fraca, inflacionária. A experiência catastrófica na República de Weimar, em parte responsável pela ascensão do nazismo, deixou os alemães apavorados com qualquer possibilidade de frouxidão monetária. A ortodoxia do Bundesbank seria vista como crucial para a prosperidade econômica.
Merkel chegou a apontar a excessiva quantidade de dinheiro barato como principal causa da crise americana. No Parlamento, em 2008, ela se mostrou bastante preocupada com as medidas tomadas pelo governo americano para conter a crise, alegando que mais dinheiro barato e dívida iriam reforçar a tendência anterior e criar uma nova crise em cinco anos. Foi profético seu alerta. Mas bastaram dois anos apenas. E o epicentro da nova crise seria a própria Europa desta vez.
Para compreender o respeito que o povo alemão tem pelo Bundesbank, assim como a aversão pelas “soluções” keynesianas, parece interessante regressar um pouco no tempo. Como já mencionado, a República de Weimar viveu uma experiência caótica de hiperinflação, o que contribuiu para a chegada dos nazistas ao poder. Durante o governo nazista, o banco central, Reichsbank, que tinha independência no papel, acabou totalmente controlado pelo Füher. Em 1939, seis diretores foram demitidos por objetarem a magnitude de empréstimos que Hitler fazia para financiar a guerra. A Alemanha não tinha uma moeda sólida por décadas.
Em 1948, os Aliados que comandavam a parte ocidental da Alemanha agora dividida criaram um novo banco central, o Bank Deutscher Länder, que imprimiu a nova moeda deutschmark. Esta transição abriu caminho para a criação do Bundesbank, em 1957. O país iria viver seu “milagre econômico”, que deixaria o mundo perplexo. Após a destruição de boa parte de sua indústria e a perda de milhões de jovens, a Alemanha ocidental ingressaria em uma trajetória de crescimento que faria dela o país mais rico da Europa. O que explica este feito histórico?
Culturalmente, os alemães sempre foram um povo trabalhador. Mas se sempre foi assim, então isto não pode explicar a mudança pós-guerra. A ajuda bilionária do Plano Marshall americano deu sua colaboração, mas não explica tudo (basta pensar no Iraque). Para Matthew Lynn, autor de Bust: Greece, The Euro, And The Soverign Debt Crisis, a melhor explicação se encontra no triunfo intelectual da época. Boa parte do mundo pós-guerra tinha aderido a uma mistura de keynesianismo e planejamento central. Exceto a Alemanha. Após os desastrosos anos de Hitler, eles sabiam exatamente o que este estado corporativista era. Em seu país ele era chamado de nacional-socialismo.*
Conforme explica Lynn, um pequeno grupo de intelectuais alemães, liderados pelos economistas Walter Eucken e Wilhelm Ropke, opôs-se ao aumento da socialização e do planejamento central da economia nazista. Eles desenvolveram o que ficou conhecido como ordoliberalismo, uma doutrina que enfatizava a estabilidade monetária, a propriedade privada, a livre entrada aos mercados e, acima de tudo, a manutenção de acirrada concorrência entre as empresas. Ao contrário dos liberais clássicos, eles achavam que o estado tinha um papel importante a cumprir, evitando oligopólios e estimulando a competição. O maior inimigo era a inflação, que os anos 1920 ensinaram ser um câncer insidioso que destrói a sociedade.
A mentalidade que ganhava o país não ficou livre de críticas. Muitos membros do governo federal condenavam a abordagem muito deflacionária do novo banco central. Vários críticos keynesianos argumentavam que o Bundesbank era obcecado demais com a inflação e fazia pouco para estimular o crescimento. No final dos anos 1950, pouco depois de sua criação, chegou a ser proposto o término da independência do banco central. Mas a idéia de um banco central como verdadeiro guardião da moeda estava enraizada demais. O Bundesbank venceu a batalha intelectual, e foi um pilar fundamental do “milagre” econômico. Enquanto vários outros países desvalorizavam suas moedas, o marco alemão nunca precisou ser desvalorizado pelo Bundesbank. O resultado foi uma das menores taxas de inflação da OECD por longo período.
Era este ícone do “milagre” alemão que estava em xeque com a criação do euro. Alguns economistas chegaram a entrar na justiça contra sua criação, alegando inconstitucionalidade, uma vez que a moeda comum poderia perder a estabilidade, já que os países membros eram muito diferentes entre si e os mecanismos de controle da nova moeda muito frágeis. Para estes críticos, o euro iria, com o tempo, abolir a independência alemã. Seu questionamento jurídico foi derrubado, e Helmut Schmidt chegou a descrever tais economistas como “idiotas sem senso de história”. O tempo costuma ser amigo da razão.
Os alemães, de forma geral, compartilham esta crença na ortodoxia monetária e na responsabilidade fiscal. Durante a crise grega, o ministro das Fianças alemão, Wolfgang Schäuble, foi direto ao ponto: “Enquanto os governantes americanos gostam de focar em medidas corretivas de curto prazo, nós tomamos a visão de longo prazo e, portanto, estamos mais preocupados com as implicações de excessivos déficits e os perigos de elevada inflação”. A aversão às aventuras monetárias está na raiz da história alemã moderna, assim como o apreço pelo trabalho duro e aperto das despesas, especialmente se alimentadas pelo crédito fácil.
O euro foi um projeto político que teve como alvo lidar com a “questão alemã”. Um país com 80 milhões de habitantes, mais rico que o restante, e com forte nacionalismo era sempre uma ameaça para os vizinhos. A união monetária iria diluir a Alemanha dentro de um grupo maior, com evidente perda de poder relativo dos alemães. Este acordo foi aceito pelos alemães graças ao legado de culpa do nazismo. A tese de Lynn é que esta culpa está desaparecendo. As novas gerações não viveram a guerra, e sentem orgulho do destaque alemão frente aos vizinhos. A Copa de 2006 mostrou um patriotismo resgatado nas ruas da Alemanha. Isso representa um risco para o euro, pois a união depende basicamente da aceitação por parte dos alemães de um acordo nada justo: eles pagam a conta, enquanto os burocratas em Bruxelas transferem os recursos para outros países.
Uma Alemanha mais “normal”, livre da culpa do passado, pode começar a questionar se deve realmente subsidiar o restante da União Europeia por toda a eternidade. Não será fácil responder na afirmativa esta pergunta. Por hora, a pressão tem sido grande para que a Alemanha aceite transferir recursos para gregos, portugueses, italianos, espanhóis e até franceses. Sarkozy chegou a utilizar abertamente a “cartada bélica”, afirmando que o fracasso do euro jogaria a região em guerra novamente. Angela Merkel acusou o golpe e repetiu o discurso em casa. A elite alemã, que ganhou bastante com o euro, endossa quase qualquer esforço para preservar a moeda. Mas até quando o povo alemão vai tolerar esse acordo? A Alemanha é uma democracia, não vamos esquecer. A pergunta, portanto, é de total importância: até quando a Alemanha agüenta bancar seus vizinhos?
* Para alguns, pode parecer estranho misturar Keynes e Hitler. Mas o próprio Keynes escreveu no prefácio da edição alemã da Teoria Geral: "[A] teoria da produção como um todo, que é o que este livro tenciona oferecer, se adapta muito mais facilmente às condições de um estado totalitário, e não às condições de livre concorrência e uma grande medida de laissez-faire".