Eduardo Bohrer
Faltavam vinte dias para completar
14 anos, cursava a 4ª série ginasial (equivalente ao 9º ano hoje) no Colégio
Santa Maria, dos Irmãos Maristas, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Era
o mais velho de cinco filhos.
Meu pai era Major do Exército e
fazia parte do Estado Maior da 3ª Divisão de Infantaria, que havia sido comandada
há até pouco tempo antes pelo General Olímpio Mourão Filho. Meses antes, o General
Mourão fora transferido para Juiz de Fora, MG, por motivos políticos.
Eu tinha o hábito de ler jornais
desde os 9 anos (1959) e acompanhava política mais de perto desde os doze
(1962). Em 62 eu chegara a Santa Maria, vindo do Rio de Janeiro (quem conhece
filhos de milicos sabe que sua vida é meio cigana). Naquele ano (62), entrara
em vigor a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação e, com ela, foi
introduzida no currículo escolar a disciplina Organização Social e Política do
Brasil, OSPB. Além de estudar num colégio católico, a cidade de Santa Maria,
sede de diocese, era uma cidade muito católica. Meu pai também havia sido aluno
dos Maristas e era muito católico. Desde 1961 em casa e desde 62 também no
colégio, os alertas sobre a desumanidade comunista eram bem frequentes. As
lembranças das atrocidades da Guerra Civil Espanhola ainda estavam bem
presentes na memória dos nossos mestres.
Em 1962, Brizola ainda era o
governador do RS e já fazia estripulias, tanto na campanha eleitoral para sua
sucessão, como para o plebiscito (parlamentarismo X presidencialismo) que
ocorreria no ano seguinte. Brizola era inteligente e sabia que tinha feito um
péssimo governo, por isso nem se candidatou a nada no seu estado natal,
disputou a eleição no novo Estado da Guanabara, por onde se elegeu Deputado
Federal (e depois os cariocas dizem que os mineiros é que compram bonde). No
Rio Grande, não conseguiu fazer o sucessor. Foi eleito Ildo Meneghetti, seu
opositor. Pouca gente sabe, mas nas eleições de 1960, João Goulart não fora o
mais votado para Vice-Presidente no seu estado natal. O mais votado no RS foi
Fernando Ferrari, do MTR (Movimento Trabalhista Renovador), dissidência do PTB
de Jango e Brizola.
Em 1963 comecei a me envolver em
política estudantil no Grêmio do Colégio, fazendo oposição, pois os diretores
eram da esquerda. Naquele ano, o Procissão de Corpus Christi na cidade de Santa
Maria havia sido também uma gigantesca corrente de oração anticomunista. Santa
Maria tinha uma nova universidade (coisa quase inexistente em cidades do
interior naquela época), como centro ferroviário do estado, tinha um forte
movimento sindical, dominado pelo PCB (ou PCdoB, a divisão entre esses dois
ocorreu justamente naqueles tempos e a gente, cá de fora, nem sabia disso).
As crises eram frequentes e toda
hora o Exército entrava em prontidão (se milico recebesse horas-extras, meu pai
poderia ter ficado rico). Oficial de Estado Maior, mau pai vez por outra fazia
viagens pelo interior do estado, visitando os quartéis das unidades que
integravam a 3ª DI. Em casa, nem fazíamos ideia dos motivos daquelas viagens.
Somente depois da Revolução, em longa entrevista ao O Globo em 31 de março de
65, assinalando o 1º aniversário do movimento, o General Mourão revelou que já
eram atividades de planejamento de estado maior. Anos depois (1978), em seu
livro de memórias, assessorado pelo historiador Hélio Silve, o Gen mourão
repetiu o relato.
Bem, vieram as férias de verão (que
naquela época eram bem maiores do que hoje, o ano letivo só começava em março).
Março de 1964 começam as aulas. Com
os amigos que fazíamos oposição à diretoria do GESMA (Grêmio Estudantil do
Colégio Santa Maria) já começamos o ano agitando. Irmão Honório, professor de
História informa que, além das provas e testes, haveria sempre um trabalho mensal,
a ser entregue até o último dia de cada mês. O trabalho daquele mês era
desenhar um mapa político da Europa, com a configuração de países e fronteiras
no Século XVI.
Aqui se torna necessária uma
explicação sobre o colégio. Naquela época, os professores dos colégios maristas
eram todos (ou quase todos) Irmãos Maristas (hoje em dia, são leigos
contratados, ficando os Irmãos só com as direções e coordenações), que ainda
usavam batina e, detalhe relevante, moravam no colégio. As aulas eram somente
de manhã. Era um costume bastante comum, quando a gente deixava de entregar uma
tarefa escolar, o Irmão ser tolerante e receber à tarde no colégio. Havia uma
grande Sala dos Professores que lembrava a redação de um jornal, cada Irmão
tinha a sua escrivaninha, geralmente abarrotada. Frequentávamos muito o Colégio
à tarde, havia muitas quadras de esportes, campo de futebol, biblioteca, os
ensaios da Banda Marcial (eu tocava pífaro e, depois, trompete) e íamos à Sala
dos Professores para tirar dúvidas, entregar tarefas etc.
O Irmão Honório determinara como
regra que os tais trabalhos mensais teriam seus prazos limites sempre no último
dia de cada mês, independentemente de haver ou não aula de História naquele
dia. Naturalmente os trabalhos poderiam ser entregues à tarde. Portanto, a data
limite era 31 de março.
Desenhar um mapa naquele tempo era
complicado. Tinta nanquim, canetinha de pena metálica etc. e tal.
Na semana anterior, pensei em
terminar o meu mapa nos feriados da Semana Santa, mas fomos para a estância de
amigos. Cheguei a levar o mapa para concluí-lo, mas as atividades campeiras
acabavam tomando todo o dia. Bem, resumo da ópera em 31 de março de manhã eu
não concluíra meu trabalho e tive que levá-lo à tarde.
Mas as coisas não transcorreram de
maneira tão simples como eu pensava que seriam.
Era 31 de março. Meu pai não veio
almoçar em casa, ficara no quartel. Depois do almoço, tratei de terminar o
mapa, era o último dia para entregar o trabalho. Lá pelo meio da tarde,
terminei. Disse à minha mãe que iria ao colégio, pois precisava entregar um trabalho.
Então, minha mãe me disse “olha, tenho que comprar alguma coisa no centro da
cidade e combinei com teu pai, assim que ele chegar do trabalho, vai me levar
de carro, se quiseres aproveitar a carona, espera ele chegar”. Topei (o Colégio
era no Centro e geralmente eu ia a pé, uma carona daquelas era um luxo).
Acontece que, na hora normal, nada
do pai chegar em casa. Não tínhamos telefone (também um luxo). A pedido da
minha mãe, fui até um posto de gasolina perto de casa onde, gentilmente, sempre
nos cediam o telefone quando necessário (naturalmente, não abusávamos, era
mesmo só quando muito necessário). Consegui falar com meu pai. Ele disse que
estava acontecendo algo, mas que ele ainda iria em casa (a casa não era longe
do QG). Eu então disse a ele que tinha um trabalho para entregar no colégio e
perguntei se podia ir. Ele recomendou que ficasse em casa, mas repetiu que iria
logo passar em casa.
Contei à mãe. Ficamos preocupados.
De minha parte, estava mais preocupado era com o meu trabalho do colégio.
Lá pelo final da tarde, já
anoitecendo, o pai apareceu em casa, correndo. Foi só pegar o uniforme de campanha,
mudas de roupa, enfim, o necessário para ficar dias em ação. Nos explicou que o
General Mourão, seu chefe anterior, partira com tropas de Juiz de Fora em
direção ao Rio de Janeiro e disse, de forma bem clara, dessa vez a coisa é
séria, o objetivo é depor o governo.
É por isso que eu sempre afirmo, COM CERTEZA ABSOLUTA, que o movimento foi
desencadeado no dia 31 de março. Durante muito tempo, os opositores dos
governos dos militares, faziam questão de dizer que foi em 1º de abril, fazendo
blague com a data. Mas há opositores mais sérios. O próprio jornalista Flávio
Tavares, comunista de carteirinha, ligadíssimo ao Brizola, em seu livro “O Dia
em que Getúlio Matou Allende” chega a antecipar mais ainda, narrando alguns
movimentos de tropas já no dia 30.
E eu, como é que ficava? Expliquei
ao pai do trabalho e perguntei, dá para eu ir até o colégio? Já anoitecera. O
pai pensou um pouco e disse, vai, aqui em Santa Maria a coisa está mais calma. E
lá me fui. É por isso que quando me pergunto o que eu fazia naquele dia, eu
sempre conto que, já à noite, eu percorria as ruas de Santa Maria com um mapa
enrolado debaixo do braço.
Lembram que eu contei que os
professores, Irmãos, moravam no colégio e trabalhavam na mesma sala? Pois é,
cheguei lá, estavam todos na sala.
Sabendo que meu pai era militar e servia no QG, me cercam com perguntas. Eu
contei o pouco que sabia, era pouco, mas era bem mais do que o já se sabia. Me
encheram de perguntas. Confesso que me senti
importante. Lembro que eu fazia questão de dizer “dessa vez é para
derrubar o governo mesmo”.
Bem, com a vitória do Movimento
Cívico Militar contrarrevolucionário de 1964, vi abortada minha “carreira” na
política estudantil. Vocês hão de convir que política estudantil, ainda mais na
adolescência, só tem graça na oposição. A gente queria era derrubar o governo.
Depois disso, ficou sem graça.
Em
Santa Maria, onde eu morava, seguiam firmes os preparativos para a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade, programada para o dia 17 de abril. Acontece
que, antes disso, foi desencadeada a Contrarrevolução de 31 de março.
Resultado, os organizadores mudaram o nome do evento para Marcha do Agradecimento.
O povo concentrou-se no centro da cidade e deslocou-se até os quartéis. Foi
emocionante.
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