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segunda-feira, 3 de abril de 2017

MINHAS LEMBRANÇAS DO 31 DE MARÇO DE 1964 – PARTE I

Eduardo Bohrer




Faltavam vinte dias para completar 14 anos, cursava a 4ª série ginasial (equivalente ao 9º ano hoje) no Colégio Santa Maria, dos Irmãos Maristas, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Era o mais velho de cinco filhos.

Meu pai era Major do Exército e fazia parte do Estado Maior da 3ª Divisão de Infantaria, que havia sido comandada há até pouco tempo antes pelo General Olímpio Mourão Filho. Meses antes, o General Mourão fora transferido para Juiz de Fora, MG, por motivos políticos.

Eu tinha o hábito de ler jornais desde os 9 anos (1959) e acompanhava política mais de perto desde os doze (1962). Em 62 eu chegara a Santa Maria, vindo do Rio de Janeiro (quem conhece filhos de milicos sabe que sua vida é meio cigana). Naquele ano (62), entrara em vigor a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação e, com ela, foi introduzida no currículo escolar a disciplina Organização Social e Política do Brasil, OSPB. Além de estudar num colégio católico, a cidade de Santa Maria, sede de diocese, era uma cidade muito católica. Meu pai também havia sido aluno dos Maristas e era muito católico. Desde 1961 em casa e desde 62 também no colégio, os alertas sobre a desumanidade comunista eram bem frequentes. As lembranças das atrocidades da Guerra Civil Espanhola ainda estavam bem presentes na memória dos nossos mestres.

Em 1962, Brizola ainda era o governador do RS e já fazia estripulias, tanto na campanha eleitoral para sua sucessão, como para o plebiscito (parlamentarismo X presidencialismo) que ocorreria no ano seguinte. Brizola era inteligente e sabia que tinha feito um péssimo governo, por isso nem se candidatou a nada no seu estado natal, disputou a eleição no novo Estado da Guanabara, por onde se elegeu Deputado Federal (e depois os cariocas dizem que os mineiros é que compram bonde). No Rio Grande, não conseguiu fazer o sucessor. Foi eleito Ildo Meneghetti, seu opositor. Pouca gente sabe, mas nas eleições de 1960, João Goulart não fora o mais votado para Vice-Presidente no seu estado natal. O mais votado no RS foi Fernando Ferrari, do MTR (Movimento Trabalhista Renovador), dissidência do PTB de Jango e Brizola.

Em 1963 comecei a me envolver em política estudantil no Grêmio do Colégio, fazendo oposição, pois os diretores eram da esquerda. Naquele ano, o Procissão de Corpus Christi na cidade de Santa Maria havia sido também uma gigantesca corrente de oração anticomunista. Santa Maria tinha uma nova universidade (coisa quase inexistente em cidades do interior naquela época), como centro ferroviário do estado, tinha um forte movimento sindical, dominado pelo PCB (ou PCdoB, a divisão entre esses dois ocorreu justamente naqueles tempos e a gente, cá de fora, nem sabia disso).

As crises eram frequentes e toda hora o Exército entrava em prontidão (se milico recebesse horas-extras, meu pai poderia ter ficado rico). Oficial de Estado Maior, mau pai vez por outra fazia viagens pelo interior do estado, visitando os quartéis das unidades que integravam a 3ª DI. Em casa, nem fazíamos ideia dos motivos daquelas viagens. Somente depois da Revolução, em longa entrevista ao O Globo em 31 de março de 65, assinalando o 1º aniversário do movimento, o General Mourão revelou que já eram atividades de planejamento de estado maior. Anos depois (1978), em seu livro de memórias, assessorado pelo historiador Hélio Silve, o Gen mourão repetiu o relato.

Bem, vieram as férias de verão (que naquela época eram bem maiores do que hoje, o ano letivo só começava em março).

Março de 1964 começam as aulas. Com os amigos que fazíamos oposição à diretoria do GESMA (Grêmio Estudantil do Colégio Santa Maria) já começamos o ano agitando. Irmão Honório, professor de História informa que, além das provas e testes, haveria sempre um trabalho mensal, a ser entregue até o último dia de cada mês. O trabalho daquele mês era desenhar um mapa político da Europa, com a configuração de países e fronteiras no Século XVI.

Aqui se torna necessária uma explicação sobre o colégio. Naquela época, os professores dos colégios maristas eram todos (ou quase todos) Irmãos Maristas (hoje em dia, são leigos contratados, ficando os Irmãos só com as direções e coordenações), que ainda usavam batina e, detalhe relevante, moravam no colégio. As aulas eram somente de manhã. Era um costume bastante comum, quando a gente deixava de entregar uma tarefa escolar, o Irmão ser tolerante e receber à tarde no colégio. Havia uma grande Sala dos Professores que lembrava a redação de um jornal, cada Irmão tinha a sua escrivaninha, geralmente abarrotada. Frequentávamos muito o Colégio à tarde, havia muitas quadras de esportes, campo de futebol, biblioteca, os ensaios da Banda Marcial (eu tocava pífaro e, depois, trompete) e íamos à Sala dos Professores para tirar dúvidas, entregar tarefas etc.

O Irmão Honório determinara como regra que os tais trabalhos mensais teriam seus prazos limites sempre no último dia de cada mês, independentemente de haver ou não aula de História naquele dia. Naturalmente os trabalhos poderiam ser entregues à tarde. Portanto, a data limite era 31 de março.
Desenhar um mapa naquele tempo era complicado. Tinta nanquim, canetinha de pena metálica etc. e tal.
Na semana anterior, pensei em terminar o meu mapa nos feriados da Semana Santa, mas fomos para a estância de amigos. Cheguei a levar o mapa para concluí-lo, mas as atividades campeiras acabavam tomando todo o dia. Bem, resumo da ópera em 31 de março de manhã eu não concluíra meu trabalho e tive que levá-lo à tarde.

Mas as coisas não transcorreram de maneira tão simples como eu pensava que seriam.

Era 31 de março. Meu pai não veio almoçar em casa, ficara no quartel. Depois do almoço, tratei de terminar o mapa, era o último dia para entregar o trabalho. Lá pelo meio da tarde, terminei. Disse à minha mãe que iria ao colégio, pois precisava entregar um trabalho. Então, minha mãe me disse “olha, tenho que comprar alguma coisa no centro da cidade e combinei com teu pai, assim que ele chegar do trabalho, vai me levar de carro, se quiseres aproveitar a carona, espera ele chegar”. Topei (o Colégio era no Centro e geralmente eu ia a pé, uma carona daquelas era um luxo).

Acontece que, na hora normal, nada do pai chegar em casa. Não tínhamos telefone (também um luxo). A pedido da minha mãe, fui até um posto de gasolina perto de casa onde, gentilmente, sempre nos cediam o telefone quando necessário (naturalmente, não abusávamos, era mesmo só quando muito necessário). Consegui falar com meu pai. Ele disse que estava acontecendo algo, mas que ele ainda iria em casa (a casa não era longe do QG). Eu então disse a ele que tinha um trabalho para entregar no colégio e perguntei se podia ir. Ele recomendou que ficasse em casa, mas repetiu que iria logo passar em casa.

Contei à mãe. Ficamos preocupados. De minha parte, estava mais preocupado era com o meu trabalho do colégio.

Lá pelo final da tarde, já anoitecendo, o pai apareceu em casa, correndo. Foi só pegar o uniforme de campanha, mudas de roupa, enfim, o necessário para ficar dias em ação. Nos explicou que o General Mourão, seu chefe anterior, partira com tropas de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro e disse, de forma bem clara, dessa vez a coisa é séria, o objetivo é depor o governo.

É por isso que eu sempre afirmo,  COM CERTEZA ABSOLUTA, que o movimento foi desencadeado no dia 31 de março. Durante muito tempo, os opositores dos governos dos militares, faziam questão de dizer que foi em 1º de abril, fazendo blague com a data. Mas há opositores mais sérios. O próprio jornalista Flávio Tavares, comunista de carteirinha, ligadíssimo ao Brizola, em seu livro “O Dia em que Getúlio Matou Allende” chega a antecipar mais ainda, narrando alguns movimentos de tropas já no dia 30.

E eu, como é que ficava? Expliquei ao pai do trabalho e perguntei, dá para eu ir até o colégio? Já anoitecera. O pai pensou um pouco e disse, vai, aqui em Santa Maria a coisa está mais calma. E lá me fui. É por isso que quando me pergunto o que eu fazia naquele dia, eu sempre conto que, já à noite, eu percorria as ruas de Santa Maria com um mapa enrolado debaixo do braço.

Lembram que eu contei que os professores, Irmãos, moravam no colégio e trabalhavam na mesma sala? Pois é, cheguei lá, estavam  todos na sala. Sabendo que meu pai era militar e servia no QG, me cercam com perguntas. Eu contei o pouco que sabia, era pouco, mas era bem mais do que o já se sabia. Me encheram de perguntas. Confesso que me senti  importante. Lembro que eu fazia questão de dizer “dessa vez é para derrubar o governo mesmo”.

Bem, com a vitória do Movimento Cívico Militar contrarrevolucionário de 1964, vi abortada minha “carreira” na política estudantil. Vocês hão de convir que política estudantil, ainda mais na adolescência, só tem graça na oposição. A gente queria era derrubar o governo. Depois disso, ficou sem graça.

Em Santa Maria, onde eu morava, seguiam firmes os preparativos para a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, programada para o dia 17 de abril. Acontece que, antes disso, foi desencadeada a Contrarrevolução de 31 de março. Resultado, os organizadores mudaram o nome do evento para Marcha do Agradecimento. O povo concentrou-se no centro da cidade e deslocou-se até os quartéis. Foi emocionante.

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