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segunda-feira, 24 de abril de 2017

FATOS, VERSÕES E DISTORÇÕES.



      
Na esteira da sua recondução à Presidência da República, em 1951, Getúlio Vargas criou o Ministério da Economia, iniciativa me engana que eu gosto inspiradora da canção homônima:
“Seu Presidente
Sua Excelência mostrou que é de fato
Agora tudo vai ficar barato
Agora o pobre já pode comer

Seu Presidente,
Pois era isso que o povo queria
O Ministério da Economia
Parece que vai resolver "...

Ministério da Economia (Geraldo Pereira & Arnaldo Passos)

    Natural de Juiz de Fora, Geraldo Theodoro Pereira faleceu após enfrentar Madame Satã no restaurante Capela, templo da Lapa histórica rebatizado como Nova Capela. O sobrevivente, homossexual praticante e brigão indigesto, alternava-se da macheza primitiva à pederastia incisiva na média a cada seis meses, e ai de quem o esnobasse.  Entrevistado do Pasquim em 1971 alegou revide a provocações de Geraldo, vítima de traumatismo craniano.      

   Diferente versão propaga vingança motivada pelo assédio fracassado de Satã a incorrigível mulherengo. Fato é que da altercação entre os valentões, figuras notórias da Lapa boêmia, resultou a morte do compositor aos trinta e sete anos de idade, agora exposto à manipulação ideológica de inominável farsa histórica.

     Acessar o site La France qui samba exige tolerância cavalar a sandices assim: - "... Bien Sûr, cette samba du "Ministère de l´economie" ne fut pas composée par lui en pensant a Lula. Nous sommes en 1951 et la reférence est Getúlio Vargas qui venait d`acceder au pouvoir, cette foi-ci- élu democratiquement par le peuple bresilien".  Sabem nada esses franceses tendenciosos, da política e menos ainda da cultura popular brasileira onde Geraldo e Wilson Batista, entre outros, pontificaram no viés da ironia.      

    Desnudar motivações desampara visões distorcidas. Wilson, flamenguista roxo, compôs No boteco do José: - "Vamos lá que hoje é de graça, no boteco do José, entra homem, entra menino, entra velho, entra mulher, é só dizer que é vascaíno, que é amigo do Lelé...". Distraído da paixão rubro-negra surfava na popularidade do legendário Expresso da Vitória cruzmaltino, tal fizera em 1937 para enaltecer - ele, vadio assumido - a onda getulista no Bonde São Januário que "leva mais um operário, sou eu que vou trabalhar". Fala sério...     

   Falso Patriota, Escurinho, Falsa Baiana e Acertei no Milhar, por exemplo - essas de Geraldo - são preciosas crônicas musicadas de peculiar estilo autoral, sofisticado nas letras singelas abordando figuras e costumes nacionais de meados do século passado. Enfatizar lhes o sentido literal desconsidera a malandragem - no bom sentido -, a amplitude temática e a picardia musical de verdadeiros historiadores modestos, ferinos, engraçados e geniais.             

   Pensando além, navegamos em mares revoltos de percepções desatadas nas representações subjetivas da realidade - versões - que reprocessadas intencionalmente geram cultos, lendas, farsas e arremedos factuais.    
    
   Logo vislumbrei confrades de personas antagônicas deles mesmos, o que ilustra - lato sensu- teatralização existencial dos seres humanos por necessidade ou opção.  

   O exótico Dom Cobra - diligente contraditório - obscurece aluno e profissional competente; o Sr Boita B - flor de pessoa, faca na boca e Beretta encaixada nas axilas - evidencia inteligência extraordinária; Cléo, poeta do bas-fond? Impossível, renega o refinamento do eminente fingidor literário; Damerran Smith & Wesson? Ora, ora! O fero guerreiro agita no Fortal pós-delícias de Iracema, que ninguém é de ferro; a alegria solar de Mário Augusto? Omite raro talento gerencial confirmado há pouco em Salvador; carranca matinal do Paca? Lenda ultrapassada pela simpatia explícita do (persona)gem.

   Sejamos sinceros: conviver acarreta doses moderadas de farisaísmo social - a invenção do superego pelo Dr Sig comprova -, e vigilância cerrada para que as inevitáveis versões narrativas não falseiem a realidade. Como no tal La France qui samba, mais apropriado dizer La Verité qui samba.                    

    Quanto aos meus estimados amigos - embusteiros deles próprios - certamente merecem reconhecimento mais efusivo às suas virtudes primaciais, antes que sucumbam a exuberantes personas.    

Rio de Janeiro, 13 de abril de 2017.

Dom Obá III, farsante do Cad Cav 1039/72.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

MINHAS LEMBRANÇAS DO 31 DE MARÇO DE 1964 – PARTE I

Eduardo Bohrer




Faltavam vinte dias para completar 14 anos, cursava a 4ª série ginasial (equivalente ao 9º ano hoje) no Colégio Santa Maria, dos Irmãos Maristas, na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Era o mais velho de cinco filhos.

Meu pai era Major do Exército e fazia parte do Estado Maior da 3ª Divisão de Infantaria, que havia sido comandada há até pouco tempo antes pelo General Olímpio Mourão Filho. Meses antes, o General Mourão fora transferido para Juiz de Fora, MG, por motivos políticos.

Eu tinha o hábito de ler jornais desde os 9 anos (1959) e acompanhava política mais de perto desde os doze (1962). Em 62 eu chegara a Santa Maria, vindo do Rio de Janeiro (quem conhece filhos de milicos sabe que sua vida é meio cigana). Naquele ano (62), entrara em vigor a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação e, com ela, foi introduzida no currículo escolar a disciplina Organização Social e Política do Brasil, OSPB. Além de estudar num colégio católico, a cidade de Santa Maria, sede de diocese, era uma cidade muito católica. Meu pai também havia sido aluno dos Maristas e era muito católico. Desde 1961 em casa e desde 62 também no colégio, os alertas sobre a desumanidade comunista eram bem frequentes. As lembranças das atrocidades da Guerra Civil Espanhola ainda estavam bem presentes na memória dos nossos mestres.

Em 1962, Brizola ainda era o governador do RS e já fazia estripulias, tanto na campanha eleitoral para sua sucessão, como para o plebiscito (parlamentarismo X presidencialismo) que ocorreria no ano seguinte. Brizola era inteligente e sabia que tinha feito um péssimo governo, por isso nem se candidatou a nada no seu estado natal, disputou a eleição no novo Estado da Guanabara, por onde se elegeu Deputado Federal (e depois os cariocas dizem que os mineiros é que compram bonde). No Rio Grande, não conseguiu fazer o sucessor. Foi eleito Ildo Meneghetti, seu opositor. Pouca gente sabe, mas nas eleições de 1960, João Goulart não fora o mais votado para Vice-Presidente no seu estado natal. O mais votado no RS foi Fernando Ferrari, do MTR (Movimento Trabalhista Renovador), dissidência do PTB de Jango e Brizola.

Em 1963 comecei a me envolver em política estudantil no Grêmio do Colégio, fazendo oposição, pois os diretores eram da esquerda. Naquele ano, o Procissão de Corpus Christi na cidade de Santa Maria havia sido também uma gigantesca corrente de oração anticomunista. Santa Maria tinha uma nova universidade (coisa quase inexistente em cidades do interior naquela época), como centro ferroviário do estado, tinha um forte movimento sindical, dominado pelo PCB (ou PCdoB, a divisão entre esses dois ocorreu justamente naqueles tempos e a gente, cá de fora, nem sabia disso).

As crises eram frequentes e toda hora o Exército entrava em prontidão (se milico recebesse horas-extras, meu pai poderia ter ficado rico). Oficial de Estado Maior, mau pai vez por outra fazia viagens pelo interior do estado, visitando os quartéis das unidades que integravam a 3ª DI. Em casa, nem fazíamos ideia dos motivos daquelas viagens. Somente depois da Revolução, em longa entrevista ao O Globo em 31 de março de 65, assinalando o 1º aniversário do movimento, o General Mourão revelou que já eram atividades de planejamento de estado maior. Anos depois (1978), em seu livro de memórias, assessorado pelo historiador Hélio Silve, o Gen mourão repetiu o relato.

Bem, vieram as férias de verão (que naquela época eram bem maiores do que hoje, o ano letivo só começava em março).

Março de 1964 começam as aulas. Com os amigos que fazíamos oposição à diretoria do GESMA (Grêmio Estudantil do Colégio Santa Maria) já começamos o ano agitando. Irmão Honório, professor de História informa que, além das provas e testes, haveria sempre um trabalho mensal, a ser entregue até o último dia de cada mês. O trabalho daquele mês era desenhar um mapa político da Europa, com a configuração de países e fronteiras no Século XVI.

Aqui se torna necessária uma explicação sobre o colégio. Naquela época, os professores dos colégios maristas eram todos (ou quase todos) Irmãos Maristas (hoje em dia, são leigos contratados, ficando os Irmãos só com as direções e coordenações), que ainda usavam batina e, detalhe relevante, moravam no colégio. As aulas eram somente de manhã. Era um costume bastante comum, quando a gente deixava de entregar uma tarefa escolar, o Irmão ser tolerante e receber à tarde no colégio. Havia uma grande Sala dos Professores que lembrava a redação de um jornal, cada Irmão tinha a sua escrivaninha, geralmente abarrotada. Frequentávamos muito o Colégio à tarde, havia muitas quadras de esportes, campo de futebol, biblioteca, os ensaios da Banda Marcial (eu tocava pífaro e, depois, trompete) e íamos à Sala dos Professores para tirar dúvidas, entregar tarefas etc.

O Irmão Honório determinara como regra que os tais trabalhos mensais teriam seus prazos limites sempre no último dia de cada mês, independentemente de haver ou não aula de História naquele dia. Naturalmente os trabalhos poderiam ser entregues à tarde. Portanto, a data limite era 31 de março.
Desenhar um mapa naquele tempo era complicado. Tinta nanquim, canetinha de pena metálica etc. e tal.
Na semana anterior, pensei em terminar o meu mapa nos feriados da Semana Santa, mas fomos para a estância de amigos. Cheguei a levar o mapa para concluí-lo, mas as atividades campeiras acabavam tomando todo o dia. Bem, resumo da ópera em 31 de março de manhã eu não concluíra meu trabalho e tive que levá-lo à tarde.

Mas as coisas não transcorreram de maneira tão simples como eu pensava que seriam.

Era 31 de março. Meu pai não veio almoçar em casa, ficara no quartel. Depois do almoço, tratei de terminar o mapa, era o último dia para entregar o trabalho. Lá pelo meio da tarde, terminei. Disse à minha mãe que iria ao colégio, pois precisava entregar um trabalho. Então, minha mãe me disse “olha, tenho que comprar alguma coisa no centro da cidade e combinei com teu pai, assim que ele chegar do trabalho, vai me levar de carro, se quiseres aproveitar a carona, espera ele chegar”. Topei (o Colégio era no Centro e geralmente eu ia a pé, uma carona daquelas era um luxo).

Acontece que, na hora normal, nada do pai chegar em casa. Não tínhamos telefone (também um luxo). A pedido da minha mãe, fui até um posto de gasolina perto de casa onde, gentilmente, sempre nos cediam o telefone quando necessário (naturalmente, não abusávamos, era mesmo só quando muito necessário). Consegui falar com meu pai. Ele disse que estava acontecendo algo, mas que ele ainda iria em casa (a casa não era longe do QG). Eu então disse a ele que tinha um trabalho para entregar no colégio e perguntei se podia ir. Ele recomendou que ficasse em casa, mas repetiu que iria logo passar em casa.

Contei à mãe. Ficamos preocupados. De minha parte, estava mais preocupado era com o meu trabalho do colégio.

Lá pelo final da tarde, já anoitecendo, o pai apareceu em casa, correndo. Foi só pegar o uniforme de campanha, mudas de roupa, enfim, o necessário para ficar dias em ação. Nos explicou que o General Mourão, seu chefe anterior, partira com tropas de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro e disse, de forma bem clara, dessa vez a coisa é séria, o objetivo é depor o governo.

É por isso que eu sempre afirmo,  COM CERTEZA ABSOLUTA, que o movimento foi desencadeado no dia 31 de março. Durante muito tempo, os opositores dos governos dos militares, faziam questão de dizer que foi em 1º de abril, fazendo blague com a data. Mas há opositores mais sérios. O próprio jornalista Flávio Tavares, comunista de carteirinha, ligadíssimo ao Brizola, em seu livro “O Dia em que Getúlio Matou Allende” chega a antecipar mais ainda, narrando alguns movimentos de tropas já no dia 30.

E eu, como é que ficava? Expliquei ao pai do trabalho e perguntei, dá para eu ir até o colégio? Já anoitecera. O pai pensou um pouco e disse, vai, aqui em Santa Maria a coisa está mais calma. E lá me fui. É por isso que quando me pergunto o que eu fazia naquele dia, eu sempre conto que, já à noite, eu percorria as ruas de Santa Maria com um mapa enrolado debaixo do braço.

Lembram que eu contei que os professores, Irmãos, moravam no colégio e trabalhavam na mesma sala? Pois é, cheguei lá, estavam  todos na sala. Sabendo que meu pai era militar e servia no QG, me cercam com perguntas. Eu contei o pouco que sabia, era pouco, mas era bem mais do que o já se sabia. Me encheram de perguntas. Confesso que me senti  importante. Lembro que eu fazia questão de dizer “dessa vez é para derrubar o governo mesmo”.

Bem, com a vitória do Movimento Cívico Militar contrarrevolucionário de 1964, vi abortada minha “carreira” na política estudantil. Vocês hão de convir que política estudantil, ainda mais na adolescência, só tem graça na oposição. A gente queria era derrubar o governo. Depois disso, ficou sem graça.

Em Santa Maria, onde eu morava, seguiam firmes os preparativos para a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, programada para o dia 17 de abril. Acontece que, antes disso, foi desencadeada a Contrarrevolução de 31 de março. Resultado, os organizadores mudaram o nome do evento para Marcha do Agradecimento. O povo concentrou-se no centro da cidade e deslocou-se até os quartéis. Foi emocionante.

quarta-feira, 8 de março de 2017

MAS SERÁ O BASTOS MOREIRA?

   Superados meses sabáticos de descontaminação virtual, retomei o manuseio de aplicativos para logo constatar incipiente polêmica derivada de texto do Bastos Moreira, Cav/70, criticando o recente emprego do Exército em operações de garantia da lei e da ordem. O debate fez-me regredir a idos tempestuosos do final da década 1960.     
     Setembro de 1968, 29, domingo à noite. No Maracanãzinho lotado, o anúncio oficial das vencedoras do III Festival Internacional da Canção (FIC) provoca vaias ensurdecedoras de vinte mil pessoas, inconformadas pela vitória de Sabiá (Chico Buarque - Tom Jobim), relegando Caminhando, ou Para Não Dizer que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, à segunda colocação.   
     No clima do É Proibido Proibir - lema das rebeliões estudantis de maio daquele ano em Paris -, decretação de Atos Institucionais e acirramento da repressão à guerrilha comunista, Caminhando conferiu foros de Cohn-Bendit tropical a Vandré e tornou-se hino de protesto contra o regime militar. O trecho mais contundente da letra - "nos quartéis nos ensinam antigas canções de morrer pela pátria e viver sem razão" - escancarava seus propósitos de negação ao estamento político-militar. A contraofensiva seria imediata.
    Na mesma semana, as primeiras páginas dos principais jornais brasileiros publicaram a íntegra de uma carta-resposta que questionava Vandré e assim terminava - "E, em nossos quartéis, continuaremos ensinando, se preciso, a morrer pela Pátria, porque assim não viveremos sem razão". Datada de 1º de outubro, portanto dois dias depois do FIC, teria sido redigida no longínquo Forte Coimbra, no Mato Grosso ainda sem a divisão atual. Autor? Certo cadete Bastos Moreira.   
    A pronta resposta encerrava nuances duvidosas. Numa época sem internet, do interior profundo do país, em rede nacional, quarenta e oito horas depois revidar os efeitos de evento ocorrido a milhares de quilômetros de distância representava proeza extraordinária. E o que fazia um cadete do Exército no Forte Coimbra, em outubro, para elevar-se às culminâncias de atingir as manchetes da grande imprensa?  
     Aspectos obscuros sem explicação convincente fertilizam suposições fantasiosas, teorias conspiratórias e inverdades no atacado. No episódio, a versão dominante foi a de atribuir a carta à AERP - Assessoria de Relações Públicas da Presidência da República e antecessora do CComSEx - também receptora da suspeição de ter influenciado a escolha de Sabiá em detrimento de Caminhando.
    Quando li o pronunciamento recente do Bastos Moreira, os fantasmas de 1968 ressurgiram. Apesar de conhecê-lo e o seu estilo peculiar de cavalariano faca na boca, nunca perguntei ao Moreira Louco - assim era conhecido no Esquadrão - a verdade sobre o midiático episódio de Para Não Dizer que Não Falei de Flores. Afinal, quem de fato redigiu a resposta a Geraldo Vandré? Ele ou a AERP através dele? E o Forte Coimbra, como fica?  
   O jovial Moreira formou-se adolescente no auge da Ipanema idílica daqueles anos 60, de mulheres estonteantes e personagens invulgares que dariam repercussão planetária ao bairro. Da varanda do Veloso, do burburinho do Zepelim, da sorveteria do Morais, do Zé da Farmácia, do cachorro Rex, da Leila Diniz, do Tom, do Arduíno, do Cabinho e de outros ícones ipanemenses, deve guardar lembranças singelas.
   Mas, coerente com a própria vocação de guerreiro--alfa ele percorreu caminho inverso ao do seu cultor Damerran Smith, quando trocou o charme urbano da beira de praia pela bucólica Vila Valqueire, vizinha da Vila Militar onde ensina técnicas de mergulho no Círculo Militar. 
     Repto ao Dr Lobo Moneró, seu parceiro diário no RAN: decifre-nos o Bastos Moreira, e suas misteriosas, retumbantes declarações públicas.
    A História agradece.
Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2017.
Dom Obá III, repórter por um dia

sábado, 4 de fevereiro de 2017

A Nação e seus militares

Nas reformas em curso, faz-se necessário não desfigurar a essência de nossas Forças Armadas


A sociedade brasileira já percebeu a necessidade de uma bem estudada reestruturação econômica em nosso país. Para tal esforço a equipe técnica do governo especificou medidas imprescindíveis para equilibrar as contas públicas.

Contudo, do que se pode concluir da “guerra de versões”, alimentada ao sabor de vários interesses, se aquelas ações não forem calibradas e justas, os resultados serão desastrosos para as nossas Forças Armadas. Parcela significativa da população – e até mesmo dos formadores de opinião – desconhece tanto o funcionamento dos regimes de Previdência quanto os principais aspectos discutidos na reforma ora em gestação.

Acende-se o alerta de que é impositiva uma acurada atenção da parte dos mentores das mudanças para evitar que, na ânsia de proceder à correção de rumos e à supressão de “privilégios”, cometam injustiças, por ignorarem as peculiaridades espartanas da profissão militar, que possam vir a descaracterizar ou até mesmo tornar inviáveis a Marinha, o Exército e a Aeronáutica.

As Forças Armadas são instituições permanentes de Estado, que exigem dos seus quadros requisitos que extrapolam meras relações trabalhistas entre empregador e empregado e caracterizam a essência da profissão militar: servir à Nação, sem nenhuma contestação. Essa relação da sociedade com os seus militares é uma espécie de “contrato social”, no qual fica acordado que as restrições de direitos – às quais aderem os militares – são recompensadas com a devida proteção social que lhes confere a Nação.

Importante destacar que, nas discussões que tomam conta do País, os militares não se utilizam das peculiaridades da carreira para “ameaçar” a sociedade e assim obter tratamento temperado por “regalias”.

Nas distantes fronteiras do País, encontramos os militares. Na pacificação das comunidades no Rio de Janeiro, ali estão os militares.

Na guarda das urnas eleitorais, eis os militares. Nas ações governamentais de defesa civil, nunca nos faltam os militares. Na distribuição de água, no Semiárido nordestino, e no combate ao mosquito Aedes aegypti nos deparamos com os militares. Na segurança dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, ali estavam os militares. No apoio à população do Haiti, lá nos representam nossos militares.

Sentimos muito orgulho de atuar sob quaisquer circunstâncias. É missão, estamos prontos! Tem sido cada vez mais frequente o clamor da sociedade por seus militares, por sua capacidade de pronta resposta, pela disciplina e pelo espírito de cumprimento do dever.

A dedicação integral e exclusiva ao serviço impede-nos de exercer qualquer outra atividade profissional. Se comparados com outras carreiras típicas do Estado brasileiro, é fácil notar que dependemos, há tempo, de soldos incompatíveis com o que o dever nos exige em termos de dedicação e de responsabilidade.

Pouco conhecido do público é o fato de que, ao final da carreira de 30 anos, quando transferido para a inatividade, as horas trabalhadas pelo militar equivalem a 45 anos, se comparadas às de um trabalhador civil. Isso se deve à realização de atividades de adestramento e operações continuadas, além dos serviços de escala de 24 horas, seguidas de expediente no dia posterior, inclusive em fins de semana e feriados, tudo isso sem os conhecidos direitos sociais e trabalhistas legalmente concedidos aos trabalhadores das outras classes, tais como o adicional de periculosidade, o FGTS e as horas extras.

Ressalta-se que o militar não pleiteia esses direitos, pois são incompatíveis com as exigências legais da “carreira das Armas”. O mais importante é cumprir o juramento do soldado perante a Bandeira Nacional: “Dedicar-se integralmente ao serviço da Pátria e defendê-la com o sacrifício da própria vida” – por esse compromisso não há preço a pagar.

No entanto, é mister perguntar: a sociedade aceitaria que um militar não se apresentasse para uma missão sob a alegação de que “está na folga”, após o serviço? A sociedade estaria disposta a “pagar horas extras” pelo emprego continuado, nas missões de garantia da lei e da ordem? Logo, é impróprio entender como “privilégio” o que, na verdade, é um cerceamento de direitos e uma imposição de deveres.

Os militares já contribuíram, pesadamente, para o esforço de redução de custos do Estado. Em 2001 foi realizada ampla “reforma” no sistema de proteção social dos militares das Forças Armadas. Naquela ocasião, vários direitos foram suprimidos, tais como o adicional de tempo de serviço, as licenças especiais e a pensão para as filhas.

Essa discussão deve ser mais aprofundada e não se restringir a uma questão numérica de simples redução de custos. Ela deve incluir, como questionamento, o que a sociedade deseja de seus cidadãos fardados: profissionais militares, com prontidão, motivação e dedicação exclusiva, ou milícias, cuja disponibilidade permanente à Nação ficaria limitada por direitos individuais regidos por legislação trabalhista ou conchavos espúrios?

Os argumentos apresentados ao longo deste artigo podem parecer ideias exclusivas do estamento militar. Não é verdade! Em recente trabalho realizado pela Fundação Getúlio Vargas – e não se pode duvidar do reconhecimento acadêmico e da isenção dessa instituição – ficam claras as especificidades da nossa carreira e as razões para que não se mesclem argumentos de ordem econômica com a defesa da sociedade brasileira, à qual servimos.

Neste momento crucial, em que a Nação busca mares calmos e bons ventos que a levem a porto seguro, faz-se necessário que o Estado e a sociedade procedam à urgente e inadiável equalização das contas públicas e, simultaneamente, ponderem acerca de não desfigurar a essência das nossas Forças Armadas e de não ferir de morte a alma de seus militares, o que – livre-nos Deus – seria inaceitável.

* COMANDANTE DO EXÉRCITO BRASILEIRO