O debate da presente eleição presidencial recebeu muitas críticas pela falta de relevância dos temas ou pelo viés ofensivo para o qual descambou, mas, conquanto seja de estranhar que essas preocupações só tenham ocorrido depois que o candidato Aécio Neves respondeu ataques da mesma natureza daqueles que desconstruíram a candidatura de Marina Silva, o que verdadeiramente está em jogo é a percepção do que significa para o Brasil a reeleição da candidata do PT. E, ao contrário das críticas costumeiras que recebe, neste aspecto, a oposição política está cumprindo o seu papel, ao lançar uma poderosa palavra de ordem para o Brasil ir às urnas e defender a escolha que ali fizer. O que na verdade falta é apercebermo-‐nos da seriedade da situação em que vivemos, na qual a oposição vem a público pronunciar, com todas as letras, o que significa o dia da eleição.
Toda ditadura é intrinsicamente corrupta, uma
verdade histórica que contraria a imagem de severidade e austeridade com que
ela procura se justificar. “Hitler ficava feliz por satisfazer o desejo infinito
de seus subalternos pelos adornos materiais do poder e do sucesso, sabedor que a
corrupção em escala maciça assegurava lealdade”(IAN KERSHAW). O ocaso da
União Soviética revelou, mais do que uma abismal ineficiência econômica, a
mais pervertida relação entre poder e privilégios de que se tem notícia,
materializada na nova classe da Nomenklatura, composta pelos gestores do partido
comunista que tudo controlavam e viviam como barões cercados da precariedade e
penúria da população. Também são conhecidos o gosto do ditador
norte-‐coreano Kim Jong-‐ Il (1941-‐2011) por vinhos franceses e a sua
bilionária conta bancária, bem como vão aflorando as notícias sobre a
fortuna e vida luxuosa dos Castro à custas de Cuba. São constatações que
não devem surpreender, pois sem a corrupção a ditadura não tem como
sobreviver.
Toda ditadura é desestabilizadora, outra
verdade extraída do obituário dos totalitarismos do século XX. Ela não pode
se conter num dado estado de coisas, por que, na ausência de competição
democrática, o seu centro de poder se torna isolado e vulnerável, tendo,
portanto, de promover seguidas “revoluções” expressas em medidas excepcionais,
tanto na política interna, quanto na externa. É a fuga permanente para o
futuro, consubstanciada, internamente no arbítrio sobre a sociedade, e
externamente, na promoção ou apoio de agressões e hostilidade ao sistema
internacional que, em sua visão ideológica, contraria seus objetivos. Sem esse
“continuum de radicalização”, ditadura alguma é capaz de se sustentar.
Quem acalenta projetos ditatoriais não foi, não é e não será honesto, e
tampouco benevolente, com tudo e com todos, nem mesmo com seus acólitos, todos
meros peões de seu poder. É simplesmente fatal pensar o
contrário.
Há cerca de vinte anos, durante um simpósio
promovido sobre as tendências políticas do pensamento brasileiro, perguntei a
uma personalidade em ascensão na política nacional do que mais precisava o
Brasil naquele momento: se da liberdade, a “ausência da constrangimento e de
restrição” (MERQUIOR), a liberdade negativa; ou da autonomia, a “fruição
livre de direitos estabelecidos ... associada a um sentido de dignidade”
(Ibid.), a liberdade positiva. A resposta foi inequívoca: era da autonomia, da
liberdade positiva, que mais necessitávamos: a liberdade protegida pela lei e
costumes; a liberdade de participar dos negócios da sociedade; a liberdade de
consciência e de crença; e a liberdade de vivermos como nos apraz. Dávamos os
primeiros passos para a consolidação de nossa democracia, e parecia natural
que, uma vez afastados os resquícios de autoritarismo político, a ênfase
recaísse na fruição consciente e responsável de direitos. O entusiasmo de
alguns painelistas em responder nesse sentido contrastou com o silêncio
constrangedor de outra presença. Naquele momento, não era possível avaliar o
por quê.
Seria desalentador apenas constatar o quanto
regredimos nesses vinte anos, ao deixarmos que a preocupação com o
desenvolvimento de nossa autonomia fosse substituída pela luta em prol da
preservação de nossa liberdade. Só isso basta para reconhecer que algo muito
errado nos aconteceu, sociedade brasileira: permitir que um projeto de poder que
jamais escondeu, por princípios e convicções, em discursos e ações, o seu
vínculo com a ditadura viesse a nos colocar diante de uma escolha impensável.
Mais animador é a certeza de que somos uma
democracia, imperfeita sem dúvida, como tantas, mas ainda capaz de reconhecer o
significado da eleição de 2014, que, pelo seu próprio conceito, remete-‐se
em importância a um futuro que vai além dela mesma, pois preservar a liberdade
é mais prudente do que sofrer para restaurá-‐la. Poucas vezes na história das
ideias na política brasileira um apelo tão poderoso foi lançado ao
eleitorado. É essa ideia que dará nome ao dia da eleição, mesmo depois que
ele tiver passado:
O dia da libertação.
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Historiador