A profissão das armas poupa os que a
escolheram dos sentimentos do medo e da covardia (ARS).
Ao término
da Segunda Guerra Mundial, Jean Paul Sartre foi procurado por três amigos
ex-combatentes e desempregados, com pedido de ajuda. Então, ele escreveu o
livro Huis Clos que foi transformado em peça teatral e permitiu aos
amigos sobreviverem, representando-a no interior da França. No Brasil, a
história foi transformada em peça teatral que foi apresentada em 1976, em um
teatro da Gávea. Mais de trinta anos são passados, mas vale a pena recordar
esse tema emblemático. No texto, Sartre coloca
três personagens no inferno, dialogando sobre a existência, sobre o
existencialismo, sobre a verdade e sobre a essência de ser e assumir.
Inspirado
pelo escritor francês, vou colocar na recepção lá de cima um jornalista brasileiro conversando com um
militar brasileiro — ambos aguardando o chamado final para ingresso no céu ou no
inferno. Não coloco direto no inferno porque isso só alguém com a dimensão de Sartre
faria. A conversa no local onde queremos chegar algum dia gira em torno de
fatos reais ou fictícios, pessoais ou institucionais. Nesse
texto, o jornalista é identificado como JB e o militar como GB. Eis pois a
íntegra da conversa dos dois personagens.
JB – Como o senhor se sente na
atualidade democrática, sendo um produto do período do regime militar
brasileiro?
GB – Os militares brasileiros contribuíram para varrer da face da Terra o
comunismo e o nazismo. É uma honra fazer parte de um universo que contabiliza
essa conquista da Humanidade.
JB – E a tortura, como o senhor
a encara?
GB – Os regimes comunistas e nazista foram os sistemas políticos e sociais
que mais torturaram e assassinaram na história humana. Em mais de uma ocasião, no
século passado, os militares brasileiros ajudaram a evitar o perigo
nazi-comunista. Negar essas circunstâncias históricas é negar a existência da
luz, da claridade, da beleza e da arte.
JB – E a tortura perpetrada
durante o regime militar brasileiro?
GB – Se analisarmos com isenção as fontes que tratam desse assunto, veremos
que existiram torturadores e explodidores. Os torturadores torturaram os
explodidores e estes explodiram inocentes. Só há sentido em tratar da tortura,
se tivermos coragem e isenção moral para tratar também das explosões e de suas
motivações.
JB – O senhor está admitindo que
houve tortura durante o regime militar brasileiro?
GB – Eu não estou admitindo. Está escrito em documentos e outras fontes
disponíveis.
JB – Não é absurdo um ser humano
fazer isso com outro ser humano?
GB – De uma perspectiva histórica, de um prisma do impacto sobre o ser
humano, é fácil inferir que a ocorrência de tortura registrada nos documentos e
outras fontes é insignificante no Brasil, se compararmos com o que ocorreu onde
o comunismo e o nazismo prevaleceram; e, especialmente, com o que ocorreria se
houvesse a vitória daqueles que pugnavam pela adoção do nazi-comunismo no
Brasil.
JB – O senhor ignora aqueles que
tiveram pessoas da família submetidas à tortura?
GB – Não, definitivamente,
não! Na década de 1970, o irmão de meu pai — sangue do sangue de papai, sangue
de meu sangue — chegou em nossa casa, na região Centro-Oeste, com a esposa e
dois filhos. Ele morava no Nordeste e disse que estava fugindo da repressão
política. Meu pai ofereceu-lhe abrigo, esconderijo e alimentação. Ao final de
sessenta dias, meu pai convidou-o para uma conversa muito séria, e disse:
“— Nesse período, nós
dividimos o que tínhamos com vocês. Chegou a hora de termos novas atitudes. De
meu modesto comércio, tirarei uma parcela para montar uma atividade que lhe
permitirá sobreviver e, com muito trabalho, progredir e propiciar aos seus uma
vida digna. Porém existe uma condição: você vai largar mão dessa absurda militância
política!”
Meu tio ficou um bom tempo
pensativo e depois respondeu?
“— Meu irmão, eu não aceito
a sua proposta! Até o final de meus dias, eu lutarei para implantar o comunismo
em nosso País. Brevemente, eu deixarei sua casa e seguirei em busca de
condições para a minha servidão.”
Passados dois dias, ele cumpriu o que prometera e se foi. E assim deve
ter sucumbido na derrota nazi-comunista daqueles dias. Ele desapareceu para
sempre.
Notável jornalista! Sobre essa questão eu lhe afirmo: a dor da família
deve ser respeitada. A discordância de pensamento e ação não impediu o imenso
sofrimento da família. Similarmente, a idiotice e a estupidez daquele que
abraçou a causa nazi-comunista devem ser respeitadas. Afinal, ele já morreu!
Que viva a morte em paz!
Eu não posso ignorar quem teve pessoa da família que passou pelo
tormento da violência, porém lhe afirmo mais: quem faz soprar o vento, pode colher
tempestade; quem semeia violência está flertando com a violência; quem peleja
pelo veneno nazi-comunista corre o risco de consumir veneno similar. Eu não estou pregando violência;
lamentavelmente, violência é inerente à condição humana; e nada se compara à violência
nazi-comunista. Nesse sentido, é oportuno lembrar o horror vivido por tantos na
década de 1940 por estarem sob a égide do nazismo ou por combatê-lo. É oportuno
não esquecer as dezenas de milhões de seres humanos que foram sacrificados na
extinta União Soviética e na China pelo comunismo, apenas por não concordarem
com esse sistema hediondo. Eu defendo o ideário de que jamais tenhamos barbárie
similar em nosso País.
JB – O que o senhor estava
fazendo no início da década de 1970? Como oficial jovem, o senhor participou da
repressão? O senhor poderia relatar algum fato vivenciado àquela época que se
relacione com aquele ambiente político?
GB – Eu era um oficial recém-formado na escola militar. Passei os dois
primeiros anos no Centro-Oeste do Brasil. Depois me tornei paraquedista militar
e fui servir na Brigada de Eternos Heróis. Fui treinado para a guerra, para
defender a Nação e a sociedade. Essa foi minha escolha. Em se tratando de
evitar que o comunismo ou o nazismo se implantassem no Brasil, se convocado,
teria participado, sem hesitação. Entretanto, não tive essa oportunidade. Enfatizo
que teria lutado, por entender que seria necessário lutar contra a
transformação do Brasil em um novo Vietnã, onde morreram mais de 500 000
vietnamitas e mais de 50 000 americanos; ou em uma outra Colômbia, onde na luta
contra a guerrilha narco-nazi-comunista, pereceram mais de 40.000 colombianos.
Vivenciei um fato curioso. Conheci uma moça que, ao cursar a
universidade em São Paulo, embrenhou-se na militância estudantil de cunho
ideológico e passou a integrar a linha de frente daqueles que estavam se
propondo a implantar o comunismo no Brasil. Ela me afirmou que passara alguns
meses em Cuba e voltara para propagar e praticar o ideário da luta para a
comunização do País. Àquela época, eu me vi diante do seguinte dilema: manter a
interação afetiva por meio da qual nos aproximamos ou denunciá-la para o aparato
de segurança do regime vigente. Minha opção foi manter a interação. Eu me
submeteria a um desafio fantástico. Não poderia renunciar às minhas crenças — liberdade,
democracia, decência, verdade e justiça, completamente ausentes no seio do
nazi-comunismo — e compactuar com a retórica e ação que a moça praticava. Mas
poderia provar-lhe que seu idealismo fora conspurcado por aqueles que tinham um
pensamento completamente perturbado. Assim, permanecemos nos encontrando durante
um período de uns poucos meses, ao fim do qual ela decidiu pelo rompimento. Ela
estava entrando em um processo depressivo terrível, sob a alegação de que eu
destruíra suas crenças. Ela disse que escolhia afastar-se de mim numa tentativa
de evitar — o que vinha se passando com frequência em sua mente — a destruição
de sua própria vida. Eu estava funcionando como um espelho para que ela se
visse cada vez mais inútil, dado que descobriu que se dedicara a uma causa
incoerente, enganosa e até mesmo hedionda. Confesso que não sei o que lhe aconteceu,
mas estou convicto de que espalhei um pouquinho de luz em seu caminho.
JB – Como é que o senhor vê a
recente matéria divulgada pelas Organizações Globo em que é veiculado que foi
um erro o apoio ao movimento militar de 1964?
GB – Inicialmente, convém ressaltar que o filho do Einstein não gestou
qualquer contribuição que pudesse ser comparada com fiapos do que seu pai
gerou. O filho de Pelé não foi ou não é um atleta genial como o pai. O filho de
Beethoven, se tivesse existido, não deixaria herança musical significativa.
Bem, mas guardemos isso.
É preciso olhar essa questão das Organizações Globo sob duas óticas: a
primeira é o estímulo governamental para
que apenas um grupo empresarial assumisse a liderança isolada da imprensa em
nosso País e a mantivesse. De uma certa forma, os líderes brasileiros das
décadas de 1970 e 1980 contribuíram formal ou informalmente para que isso
acontecesse. A segunda é a necessidade
desse grupo, com o passar do tempo, se manter na dianteira de seus congêneres.
O senhor Roberto Marinho era reconhecidamente um visionário a quem cabe
os méritos do aproveitamento da oportunidade oferecida. O senhor Marinho e a
oportunidade aproveitada geraram as Organizações Globo. O apoio dado à
Contrarrevolução de 1964 foi resultado de sua inteligência, talento e ética
aparente. Foi resultado da consciência inequívoca de que o nazi-comunismo seria
um desastre para o Brasil. O testemunho documental desse apoio é
inquestionável.
A negação do ideário do senhor Marinho por seus filhos está alicerçada
na diferença de inteligência e talento entre eles e o pai. À semelhança dos
filhos de Einstein, de Pelé e de Beethoven, eles só podem inserir-se na poeira
das sendas do genitor. Sendo que no aspecto ético, eles não fazem a menor
questão de ao menos manter uma certa discrição. Nada de aparência em assuntos
de ética. O que conta é atuar de forma despudoradamente distante dos ditames da
ética.
No atinente à necessidade de manutenção do poder amealhado pelas
Organizações Globo, na ausência de talento empreendedor, a única solução é ter
aportes miliardários dos poderosos de plantão. E para tanto, é preciso vender a
consciência, é necessário não apenas ter o pai morto, é imperioso
assassinar-lhe a memória para se associar aos responsáveis pela chave do cofre
público.
O erro não está no que o senhor Marinho fez, está na natureza do ser
humano que dificilmente permite a reprodução do gênio antecessor. E de forma
madrasta, permite que venham descendentes despojados dessa genialidade
transformadora e admirável e despreocupados com um mínimo de aparência no que
diz respeito à decência e à ética.
JB – No espectro político,
social e ideológico, como o senhor se vê?
GB – Eu me vejo como um humanista.
JB – Será que eu entendi bem? O
senhor disse humanista? Como assim?
GB – É preciso mencionar a minha trajetória profissional. Numa primeira
quadra de minha evolução, eu trabalhei em construção civil, na Amazônia e no
Planalto Central. O foco de minhas atenções estava voltado para o conforto e o
bem-estar do ser humano. Em um segundo momento, eu tive uma experiência
insuperável ao trabalhar no magistério de segundo grau e também na Faculdade.
Foram cerca de dez anos tentando transmitir conhecimento específico, da
disciplina acadêmica, mas também experiência de vida. E qual era o objetivo?
Estimular cada aluno a se tornar um ser humano melhor, mais produtivo e mais
consciente de sua dignidade. Na etapa final de minha carreira, prestei meus
serviços no setor de pesquisa & desenvolvimento, visando à busca de
qualificação, autonomia e independência do ser humano brasileiro. Nessa
evolução, mantive a coerência da retórica e da ação; preguei e defendi a
liberdade, a decência, a justiça e a verdade; e ressalvadas as imperfeições
ditadas pela condição humana, pratiquei inquestionavelmente as ações
consentâneas com esse discurso. Vejo-me como humanista também por notar que
Hemingway, pesquisando as razões da devastação humana que testemunhara, indagou
por quem os sinos dobravam. Evidentemente, Hemingway repetia em sua obra o que
o poeta britânico John Donne, em face de suas tragédias familiares, indagara em
Devotions upon Emergent Occasions (publicado em 1624 e encontrado em
www.gutenberg.org/ebooks/23772) e, com exemplar inconformismo, respondera:
“A morte de qualquer homem
me apequena, porque sou parte do universo dos seres humanos; portanto, nunca
pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
Interpretando o poeta, posso afirmar que eles dobram por todos nós!
Quando alguém morre, um pouco de cada um nós segue junto com aquele que se foi.
JB – No livro Huis
Clos (A portas fechadas),
Sartre cunha a frase “L’enfer c’est les autres!” (Os outros são o nosso inferno!), para
metaforizar a interação dos três personagens que conversam no inferno. O senhor
acha que essa frase se aplica a nós dois?
GB
– A frase de Sartre é emblemática e
obviamente tem a ver conosco. Senão vejamos. Primeiramente, se eu sou picado
por uma cobra, esse fato não tem relevância para você, o que é razoável. Agora
se eu morder o rabo da cobra, você tentará colocar a manchete na primeira
página do seu jornal. Segundamente, a notícia da morte causada a mais de 2 000
chilenos pelo regime ditatorial daquele País é enfatizada pela mídia em todas
as oportunidades surgidas, o que também é razoável. Por outro lado, a morte de
mais de 20 000 cubanos pelo regime ditatorial vigente na ilha é, não raro,
omitida no âmbito do seu trabalho. Terceiramente, as mortes e torturas de mais
de 10 milhões de seres humanos causadas diretamente pelo nazismo são objeto de
divulgação e indignação por você e seus congêneres, o que é inequivocamente
razoável. Entretanto, as mortes e torturas de mais de 20 milhões de pessoas
ocasionadas diretamente pelo comunismo soviético são esquecidas em
circunstâncias correlatas. Queira notar que há não apenas um absurdo lógico nos
dois últimos dados, mas também uma inversão lógica, em relação ao primeiro —
ambos inexplicáveis.
Ademais, são absolutamente
incompreensíveis, as razões por que você e muitos congêneres são acometidos por
um sentimento de afetividade pela cobra, pelo sistema cubano e pelo sistema
soviético; e de ódio por sistemas similares.
JB – Mas o senhor ....
GB – A propósito, posso saber sua opinião sobre a aplicabilidade da
assertiva sartriana a nós?
JB – É inequívoco, é fácil
construir a aplicação conceitual do que Sartre asseverara. Dada a
impossibilidade da violência ser contida com afagos, em face de sua profissão, o
senhor é parte da arquitetura da violência em que está inserido o ser humano. Alterando
o foco, posso asseverar que conquanto estejamos em polos contrários, agradar-me-ia
ter nossa conversa publicada. E aí vem a extrapolação da verdade de Sartre: o
responsável por meu jornal jamais permitirá sua divulgação.
GB – Nobre jornalista, é chegada
nossa hora. Estamos sendo chamados. Entremos para o reino do além — claro,
espero que o céu tenha sido a opção que nós conquistamos. Que tal se após nossa
admissão, fundarmos um jornal? Você será o redator chefe e terá um compromisso:
não omitir a verdade e publicar “apenas a verdade”. Enfatizo essa expressão
porque ela será o título do nosso periódico.
Aléssio Ribeiro Souto
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