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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Autonomia Tecnológica e Estratégica


Aléssio Ribeiro Souto – 6/12/2014

A concepção e implementação ou a transformação de qualquer sistema de ciência & tecnologia pode, e talvez deve, levar em conta condicionantes históricas, científico-tecnológicas e estratégicas. Neste texto, sem preocupação com a estruturação adequada e com embasamento conceitual, tento abordar essas condicionantes.

A autonomia tecnológica e estratégica é essencial para qualquer força armada e para o país que a abriga. Como origem ou corolário dessa autonomia, na história da Humanidade, não há vitórias militares relevantes com armamentos concebidos, projetados e construídos no exterior. Um brilhante aluno da ECEME se contrapôs a essa assertiva citando-me as vitórias norte-vietnamitas e israelenses. Asseverei-lhe que não foram as armas que deram a vitória aos vietcongues, mas a vontade daquele povo, estimulada por um militar estadista, o General Giap. Afirmei também que os israelenses usaram carros de combate e aeronaves compradas no mercado externo, mas instrumentalizadas com a aviônica e demais controladores e sensores — isto é, toda a inteligência dos sistemas bélicos — concebidos e produzidos pelos cérebros locais. Isso sem esquecer o que afirmara Ben Gurion, nos primórdios do Estado judeu, em tradução livre e descompromissada com a precisão: “Somos poucos, em um pequeno território, mas temos os melhores cérebros!”. E incontinenti, determinou a escolha de alguns dos mais talentosos jovens da área de física e engenharia para fazer doutorado em consagradas universidades europeias e americanas, voltar a Israel e estabelecer as fundações do que se conhece hoje como uma excepcional condição tecnológica e estratégica daquele Estado.

Como ilustração da autonomia nas duas vertentes fundamentais, vale a pena lembrar outros exemplos díspares, mas emblemáticos, envolvendo os Estados Unidos, Rússia, França,  China, África do Sul, Paquistão, Coréia do Norte e Irã. Os exemplos aqui citados estão apoiados na pesquisa e autonomia nuclear, permeada de dificuldades científico-tecnológicas, políticas e econômicas, a tal ponto que o Brasil renunciou ao desenvolvimento de armamento atômico. Entretanto, o conhecimento da evolução das conquistas nucleares pode ser considerado exemplar e serve de referência para outras áreas com menos sensibilidade e barreiras internacionais.

Os Estados Unidos produziram e testaram a primeira bomba atômica em Los Alamos, em 1945, no âmbito do Projeto Manhatan, reunindo alguns dos maiores cientistas de todos os tempos, oriundos de vários países — dentre os 24 cientistas mais relevantes, 11 eram americanos e 13 eram europeus. Entre eles podem ser mencionados: o italiano Enrico Fermi; os húngaros Leo Szilard, John von Neumann e Edward Teller; o dinamarquês Niels Bohr (com pequena mas importante participação, já que pode ser considerado, depois de Einstein, o mais notável cientista do século XX); todos reunidos sob a inexcedível liderança do americano Robert Openheimer (que mais tarde, fora muito contestado, entre outras coisas, por ser ligado a socialistas e comunistas). Ademais, o êxito americano resultou da contribuição de cerca de dezenas de centros de pesquisa tecnológica ou universidades.

A União Soviética construiu e testou sua primeira bomba atômica em 1949, após replicar, próximo dos montes Urais (com cerca de 40 000 profissionais, do servente de pedreiro ao engenheiro, envolvidos somente na construção civil), a infraestrutura americana do Projeto Manhatan e tendo obtido o projeto completo da primeira bomba atômica americana, que lhes foi repassado por Klaus Fuchs, cientista britânico, nascido na Alemanha, que trabalhou em Los Alamos e atuou como espião soviético.

Passando para o exemplo francês, é oportuno lembrar que após o término da Segunda Guerra Mundial, De Gaulle cobrou de Truman o apoio para o desenvolvimento científico-tecnológico e militar francês, em contrapartida acertada com o falecido presidente Roosevelt pelo apoio francês, em cientistas nucleares, que saíram da França por ocasião da invasão nazista. Nessa época, De Gaulle queria apoio para submarino e para a área nuclear. Truman fez-se de desentendido, asseverando que não havia qualquer acordo formal nesse sentido. De Gaulle tomou a decisão de implementar programas autônomos. Daí, resultaram as indústrias de carros de combate, de aeronaves bélicas, de submarinos e de armas nucleares, como hoje as conhecemos — ressalte-se que os franceses explodiram a bomba de fissão nuclear, chamada Gerboise Bleue, em Reggane/Argélia, em 1960 e a bomba de fusão nuclear, no atol de Fangataufa, no Pacífico, em 1968). É conveniente não esquecer que os americanos negaram apoio nuclear também para Israel. Por razões comuns, e também distintas, ocorreu a cooperação nuclear franco-israelense, a tal ponto que, por ocasião do teste nuclear com a Gerboise Bleue, afirmou-se que com uma única explosão, duas nações tornaram-se nucleares: França e Israel. Fontes não oficiais declaram que, na atualidade, Israel dispõe de arsenal atômico com mais de 100 bombas.

Mao Tse Tung triunfou na China em 1949 e foi a Moscou pedir apoio a Stalin. Tomou chá de cadeira durante quase uma semana. Foi recebido e ganhou a promessa de assistência militar, educacional e científico-tecnológica. Inicialmente, essa promessa foi cumprida e um extenso programa de cooperação foi estabelecido — até mesmo uma bomba atômica foi prevista no apoio para que os chineses pudessem ter dados para seu próprio projeto nuclear. No final da década de 1950, Kruschev encerrou o programa de cooperação, nos termos em que fora implementado, naturalmente com ênfase na negação do apoio nuclear. E o que fizeram os chineses? Sorriram! Na área científico-tecnológica para fins militares, eles montaram um programa espelho secreto, no qual tudo o que era feito em parceria com os soviéticos, era reproduzido no programa paralelo. Disso resultou, por exemplo, a primeira bomba atômica chinesa, que foi denominada “596” — número que se tornou emblema da honra e vergonha chinesas, uma vez que a negativa do líder soviético fora feita em junho de 1959 (59/6).  A China construiu seu primeiro artefato atômico por essas razões, mas também porque obteve o projeto do mesmo espião que o entregou para a União Soviética (depois de ser preso na Inglaterra durante mais de dez anos pelos malfeitos como espião, ele foi morar na antiga Alemanha Oriental e ao ser contatado pelos chineses entregou-lhes o projeto); e também com alguma colaboração francesa, já que o líder do projeto chinês, cientista Qian Sanqiang, trabalhou 11 anos na França com os renomados cientistas Frédéric e Irène Joliot-Curie (ele, membro do Partido Comunista Francês e demitido da liderança do projeto nuclear francês em 1950) e, ao retornar à China, recebeu de Mao Tse Tung a incumbência de manter a ligação com o casal Curie. Foi por essa época que os chineses lançaram as oito prioridades estratégicas de Ciência e Tecnologia, cujo objetivo era torná-los uma das potências dominantes 100 anos depois, ou seja, em 2050 — parece que vai acontecer antes! Sem querer ser exaustivo, convém lembrar que, das cinco potências que dispõem das bombas A e H, a China foi a que menos tempo levou para passar da explosão da bomba de plutônio para a de hidrogênio — a primeira foi testada em 1964 e a termonuclear em 1967.

No que concerne à África do Sul, a política do apartheid ocasionou rigoroso embargo internacional àquele país. Então, os sul-africanos não hesitaram e desencadearam processos científico-tecnológicos autônomos. O CSIR (Council for Scientific and Industrial Research) é um exemplo extremamente revelador. Centraliza a maior parte da pesquisa & desenvolvimento civil e militar da África do Sul e tem avanços surpreendentes para o inequivocamente problemático país. Como o maior embargo internacional, direcionado para qualquer longitude ou latitude, pode estar na área nuclear, vale a pena relatar que os sul-africanos produziram seis bombas atômicas. Esse fato é pouco divulgado, mas em 1993, antes de passar o poder para Mandela, o presidente De Klerk anunciou, em sessão secreta do Parlamento, a interrupção do programa nuclear e a desmontagem e, supostamente, o reaproveitamento em atividades industriais ou a destruição do material nuclear. Obviamente, a inequívoca autonomia sul-africana foi reduzida expressivamente após a ascensão de Mandela, com a consequente abertura para o exterior e as pressões e influências resultantes do poder econômico, científico-tecnológico e político internacional.

A Coréia do Norte e o Irã — este ainda não tem a bomba atômica, mas tem uma ampla infraestrutura nuclear, com o objetivo inarredável de construí-la — receberam ajuda da China.

Por intermédio de A. Q. Khan, o Paquistão obteve tecnologia nuclear europeia de forma ilícita, quando por vários anos esse cientista trabalhou em projetos nucleares europeus; contou com engenheiros nucleares da África do Sul, disponíveis após a interrupção do projeto nuclear sul-africano; e também recebeu ajuda da China.

Às questões de desenvolvimento nuclear, ao contexto em que ele historicamente ocorreu nos diversos países com êxito nesse tipo de empreitada, agregue-se a condição de beligerante de todos os países que se tornaram detentores de armas nucleares. Fundamental é refletir que, conquanto as conquistas dependam do exterior, as vitórias científico-tecnológicas, industriais e estratégicas nesse campo são individuais de cada nação.

Em face da recorrente citação de armas nucleares nessas notas, devo ressaltar que não considero primordial produzir bomba atômica. A Alemanha e o Japão não a produzem. Entretanto, a autonomia pode ser buscada nas tecnologias correlatas e na pesquisa & desenvolvimento de vetores de outras áreas, como o fazem de forma magistral os alemães e os japoneses.

O que é relevante mencionar quanto à autonomia tecnológica e estratégica no Brasil? Ressalvada a modéstia de conquistas, os resultados obtidos no âmbito do Plano Básico de Ciência e Tecnologia do Exército/2005 — um vigoroso (para a época) programa de pesquisa & desenvolvimento — devem ser considerados exemplares. Pois bem, a equipe de pesquisadores do Exército, em cooperação com outros centros de pesquisa e universidades, bem como com a participação do segmento industrial nacional — nacional e de brasileiros, eu ressalto! —, logrou êxito em pesquisar, desenvolver e produzir pelo menos 6 sistemas bélicos que jamais foram obtidos ao Sul do Equador: radar para defesa antiaérea, simulador para treinamento de piloto de helicóptero, sistema de comando e controle, sistema de guerra eletrônica, viaturas tubulares sobre rodas com suspensão independente nas quatro rodas e sistema para emprego automático de metralhadora em viatura blindada. Convém enfatizar que todos estão em uso ou poderiam estar em uso no Exército. Essa amostra, pequena é bem verdade, comprova que o desenvolvimento autônomo é possível.

E um contra exemplo de nosso País? Tomemos uma referência industrial, alicerçada em evolução tecnológica: a indústria automobilística brasileira que é uma das seis maiores do mundo (pode ser a quinta, sétima ou oitava; isso é irrelevante). Entretanto, somos o único país dentre os 10 maiores produtores de automóvel que não possui uma empresa automobilística nacional, de propriedade de nacionais e com capital majoritariamente nacional. Por imperioso, esse segmento industrial pode ser considerado uma metáfora dos demais segmentos importantes para qualquer país. O impacto disso sobre a área militar é enorme. A quem recorrer para termos vetores de deslocamento nacionais? A solução: pagar a pesquisa & desenvolvimento para empresas estrangeiras que já produzem vetor similar. É nonsense em estado puro.

Por ocasião da concepção de nossa Estratégia Nacional de Defesa, tive a oportunidade de examinar as estratégias similares, britânica, francesa, chinesa e australiana. Na época, fui quase inconveniente, pleiteando que, do ponto de vista científico-tecnológico, fosse levado às mais altas instâncias militares a necessidade de intensa e pertinaz participação no processo. Curiosamente, tive no CTEx uma manhã como o Sr. Mangabeira Unger e cheguei a ser, ao lado de outros, cogitado para participar de algumas reuniões para tratar do tema — não foi possível! E eu aduziria que o setor de Ciência & Tecnologia militar terrestre teve uma participação menor do que poderia! Um indicador das consequências da END (ou EDN) foi o interesse das empresas estrangeiras do setor de defesa em atuar no Brasil e até mesmo em adquirir empresas brasileiras que, a duras penas e com apoio do Exército, pesquisaram e produziram alguma coisa. Essas multinacionais entenderam o recado algo como: “É a hora, venham que lhes acolhemos!”. Lamente-se similarmente a associação de empresas brasileiras do setor de construção civil com multinacionais estrangeiras do setor de defesa. As empresas brasileiras conseguem até construir mais no exterior e as estrangeiras mantém a supremacia e impedem a nossa autonomia. Nesse sentido, há companheiros que pregam com desassombro a associação como forma de aceleração do crescimento. Eu também posso defender a ideia, desde que haja uma participação paritária — o que é uma impossibilidade quando o insumo essencial é o conhecimento, pois prevalece quem o detém.

O que posso inferir do conteúdo dessas notas e informações? Não tenho a pretensão de transmitir conhecimento ou convencer sobre isso ou aquilo. Mas é inquestionável asseverar que no Brasil não há prioridade para o desenvolvimento científico-tecnológico, como de resto, não há prioridade para o processo educacional. Não há uma mentalidade de pregação da autonomia tecnológica e estratégica. Tudo que vem do exterior continua sendo bom. De um simples objeto doméstico a aeronaves e equipamentos militares, passando pelos serviços culturais como, por exemplo, a música e o cinema. Fala-se com ar de superioridade quando se tem acesso ao que vem do exterior. Penso que há uma enorme lacuna a ser preenchida em nosso País. É a ausência de pensadores e formadores de opinião concernentes aos interesses das Forças Armadas, alicerçados no campo científico-tecnológico. Então, estes garranchos com características panfletárias, sem preocupação com a estruturação e com o embasamento conceitual, podem servir de estímulo para que companheiros talentosos, com maior conhecimento e qualificação possam tratar apropriadamente da fundamental questão da autonomia tecnológica e estratégica de nosso País.

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Este texto foi elaborado com dados colhidos em fontes bibliográficas e obtidos em visitas a centros de pesquisa científico-tecnológica da África do Sul, China, Rússia e Reino Unido. Para um estudo mais cuidadoso e confirmação dos dados vale a pena consultar:

  1. The nuclear express, de Thomas C. Reed e Danny B. Stillman, Zenith Press, 2009;
  2. Defend the Realm – The authorized history of MI5, de Christopher Andrew, Borzoi Book, 2009;
  3. The making of the atomic bomb, de Richard Rhodes, Simon & Schuster, edição revista de 2012;
  4. Spying on the bomb, de Jeffrey T. Richelson, W. W. Norton & Company, 2007; e
  5. Robert Oppenheimer – A life inside the center, de Ray Monk, Dobleday, 2012.

 

PS1. Conquanto os dados levantados possam ser considerados ultrapassados e/ou irrelevantes, vale ressaltar que as fontes bibliográficas citadas, à exceção de uma apenas, foram elaboradas no período de 2009 a 2012. Nosso patamar organizacional impõe a renúncia a temas que os países organizados não descuram.

 

PS2. O presente texto pode ser encontrado no endereço:
http://ribeirosouto.blogspot.com.br/2014/12/autonomia-tecnologica-e-estrategica.html

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