Aléssio Ribeiro
Souto – 6/12/2014
A
concepção e implementação ou a transformação de qualquer sistema de ciência
& tecnologia pode, e talvez deve, levar em conta condicionantes históricas,
científico-tecnológicas e estratégicas. Neste texto, sem preocupação com a
estruturação adequada e com embasamento conceitual, tento abordar essas
condicionantes.
A
autonomia tecnológica e estratégica é essencial para qualquer força armada e
para o país que a abriga. Como origem ou corolário dessa autonomia, na história
da Humanidade, não há vitórias militares relevantes com armamentos concebidos,
projetados e construídos no exterior. Um brilhante aluno da ECEME se contrapôs a
essa assertiva citando-me as vitórias norte-vietnamitas e israelenses.
Asseverei-lhe que não foram as armas que deram a vitória aos vietcongues, mas a
vontade daquele povo, estimulada por um militar estadista, o General Giap.
Afirmei também que os israelenses usaram carros de combate e aeronaves
compradas no mercado externo, mas instrumentalizadas com a aviônica e demais
controladores e sensores — isto é, toda a inteligência dos sistemas bélicos —
concebidos e produzidos pelos cérebros locais. Isso sem esquecer o que afirmara
Ben Gurion, nos primórdios do Estado judeu, em tradução livre e
descompromissada com a precisão: “Somos poucos, em um pequeno território, mas
temos os melhores cérebros!”. E incontinenti, determinou a escolha de alguns
dos mais talentosos jovens da área de física e engenharia para fazer doutorado em
consagradas universidades europeias e americanas, voltar a Israel e estabelecer
as fundações do que se conhece hoje como uma excepcional condição tecnológica e
estratégica daquele Estado.
Como
ilustração da autonomia nas duas vertentes fundamentais, vale a pena lembrar outros
exemplos díspares, mas emblemáticos, envolvendo os Estados Unidos, Rússia,
França, China, África do Sul, Paquistão,
Coréia do Norte e Irã. Os exemplos aqui citados estão apoiados na pesquisa e
autonomia nuclear, permeada de dificuldades científico-tecnológicas, políticas e
econômicas, a tal ponto que o Brasil renunciou ao desenvolvimento de armamento
atômico. Entretanto, o conhecimento da evolução das conquistas nucleares pode
ser considerado exemplar e serve de referência para outras áreas com menos
sensibilidade e barreiras internacionais.
Os
Estados Unidos produziram e testaram a primeira bomba atômica em Los Alamos, em
1945, no âmbito do Projeto Manhatan, reunindo alguns dos maiores cientistas de
todos os tempos, oriundos de vários países — dentre os 24 cientistas mais
relevantes, 11 eram americanos e 13 eram europeus. Entre eles podem ser
mencionados: o italiano Enrico Fermi; os húngaros Leo Szilard, John von Neumann
e Edward Teller; o dinamarquês Niels Bohr (com pequena mas importante participação,
já que pode ser considerado, depois de Einstein, o mais notável cientista do
século XX); todos reunidos sob a inexcedível liderança do americano Robert
Openheimer (que mais tarde, fora muito contestado, entre outras coisas, por ser
ligado a socialistas e comunistas). Ademais, o êxito americano resultou da
contribuição de cerca de dezenas de centros de pesquisa tecnológica ou universidades.
A
União Soviética construiu e testou sua primeira bomba atômica em 1949, após
replicar, próximo dos montes Urais (com cerca de 40 000 profissionais, do
servente de pedreiro ao engenheiro, envolvidos somente na construção civil), a
infraestrutura americana do Projeto Manhatan e tendo obtido o projeto completo
da primeira bomba atômica americana, que lhes foi repassado por Klaus Fuchs,
cientista britânico, nascido na Alemanha, que trabalhou em Los Alamos e atuou como
espião soviético.
Passando
para o exemplo francês, é oportuno lembrar que após o término da Segunda Guerra
Mundial, De Gaulle cobrou de Truman o apoio para o desenvolvimento
científico-tecnológico e militar francês, em contrapartida acertada com o
falecido presidente Roosevelt pelo apoio francês, em cientistas nucleares, que
saíram da França por ocasião da invasão nazista. Nessa época, De Gaulle queria
apoio para submarino e para a área nuclear. Truman fez-se de desentendido,
asseverando que não havia qualquer acordo formal nesse sentido. De Gaulle tomou
a decisão de implementar programas autônomos. Daí, resultaram as indústrias de
carros de combate, de aeronaves bélicas, de submarinos e de armas nucleares,
como hoje as conhecemos — ressalte-se que os franceses explodiram a bomba de
fissão nuclear, chamada Gerboise Bleue,
em Reggane/Argélia, em 1960 e a bomba de fusão nuclear, no atol de Fangataufa,
no Pacífico, em 1968). É conveniente não esquecer que os americanos negaram
apoio nuclear também para Israel. Por razões comuns, e também distintas,
ocorreu a cooperação nuclear franco-israelense, a tal ponto que, por ocasião do
teste nuclear com a Gerboise Bleue,
afirmou-se que com uma única explosão, duas nações tornaram-se nucleares:
França e Israel. Fontes não oficiais declaram que, na atualidade, Israel dispõe
de arsenal atômico com mais de 100 bombas.
Mao
Tse Tung triunfou na China em 1949 e foi a Moscou pedir apoio a Stalin. Tomou
chá de cadeira durante quase uma semana. Foi recebido e ganhou a promessa de
assistência militar, educacional e científico-tecnológica. Inicialmente, essa
promessa foi cumprida e um extenso programa de cooperação foi estabelecido —
até mesmo uma bomba atômica foi prevista no apoio para que os chineses pudessem
ter dados para seu próprio projeto nuclear. No final da década de 1950,
Kruschev encerrou o programa de cooperação, nos termos em que fora implementado,
naturalmente com ênfase na negação do apoio nuclear. E o que fizeram os
chineses? Sorriram! Na área científico-tecnológica para fins militares, eles
montaram um programa espelho secreto, no qual tudo o que era feito em parceria
com os soviéticos, era reproduzido no programa paralelo. Disso resultou, por
exemplo, a primeira bomba atômica chinesa, que foi denominada “596”
— número que se tornou emblema da honra e vergonha chinesas, uma vez que a
negativa do líder soviético fora feita em junho de 1959 (59/6). A China construiu seu primeiro artefato
atômico por essas razões, mas também porque obteve o projeto do mesmo espião
que o entregou para a União Soviética (depois de ser preso na Inglaterra
durante mais de dez anos pelos malfeitos como espião, ele foi morar na antiga
Alemanha Oriental e ao ser contatado pelos chineses entregou-lhes o projeto); e
também com alguma colaboração francesa, já que o líder do projeto chinês,
cientista Qian Sanqiang, trabalhou 11 anos na França com os renomados
cientistas Frédéric e Irène Joliot-Curie (ele, membro do Partido Comunista
Francês e demitido da liderança do projeto nuclear francês em 1950) e, ao
retornar à China, recebeu de Mao Tse Tung a incumbência de manter a ligação com
o casal Curie. Foi por essa época que os chineses lançaram as oito prioridades
estratégicas de Ciência e Tecnologia, cujo objetivo era torná-los uma das
potências dominantes 100 anos depois, ou seja, em 2050 — parece que vai
acontecer antes! Sem querer ser exaustivo, convém lembrar que, das cinco
potências que dispõem das bombas A e H, a China foi a que menos tempo levou
para passar da explosão da bomba de plutônio para a de hidrogênio — a primeira foi
testada em 1964 e a termonuclear em 1967.
No
que concerne à África do Sul, a política do apartheid
ocasionou rigoroso embargo internacional àquele país. Então, os sul-africanos
não hesitaram e desencadearam processos científico-tecnológicos autônomos. O
CSIR (Council for Scientific and Industrial Research) é um exemplo extremamente
revelador. Centraliza a maior parte da pesquisa & desenvolvimento civil e
militar da África do Sul e tem avanços surpreendentes para o inequivocamente
problemático país. Como o maior embargo internacional, direcionado para
qualquer longitude ou latitude, pode estar na área nuclear, vale a pena relatar
que os sul-africanos produziram seis bombas atômicas. Esse fato é pouco
divulgado, mas em 1993, antes de passar o poder para Mandela, o presidente De
Klerk anunciou, em sessão secreta do Parlamento, a interrupção do programa
nuclear e a desmontagem e, supostamente, o reaproveitamento em atividades
industriais ou a destruição do material nuclear. Obviamente, a inequívoca
autonomia sul-africana foi reduzida expressivamente após a ascensão de Mandela,
com a consequente abertura para o exterior e as pressões e influências resultantes
do poder econômico, científico-tecnológico e político internacional.
A
Coréia do Norte e o Irã — este ainda não tem a bomba atômica, mas tem uma ampla
infraestrutura nuclear, com o objetivo inarredável de construí-la — receberam
ajuda da China.
Por
intermédio de A. Q. Khan, o Paquistão obteve tecnologia nuclear europeia de
forma ilícita, quando por vários anos esse cientista trabalhou em projetos
nucleares europeus; contou com engenheiros nucleares da África do Sul,
disponíveis após a interrupção do projeto nuclear sul-africano; e também
recebeu ajuda da China.
Às
questões de desenvolvimento nuclear, ao contexto em que ele historicamente
ocorreu nos diversos países com êxito nesse tipo de empreitada, agregue-se a condição
de beligerante de todos os países que se tornaram detentores de armas nucleares.
Fundamental é refletir que, conquanto as conquistas dependam do exterior, as
vitórias científico-tecnológicas, industriais e estratégicas nesse campo são
individuais de cada nação.
Em
face da recorrente citação de armas nucleares nessas notas, devo ressaltar que
não considero primordial produzir bomba atômica. A Alemanha e o Japão não a
produzem. Entretanto, a autonomia pode ser buscada nas tecnologias correlatas e
na pesquisa & desenvolvimento de vetores de outras áreas, como o fazem de
forma magistral os alemães e os japoneses.
O
que é relevante mencionar quanto à autonomia tecnológica e estratégica no
Brasil? Ressalvada a modéstia de conquistas, os resultados obtidos no âmbito do
Plano Básico de Ciência e Tecnologia do Exército/2005 — um vigoroso (para a
época) programa de pesquisa & desenvolvimento — devem ser considerados
exemplares. Pois bem, a equipe de pesquisadores do Exército, em cooperação com
outros centros de pesquisa e universidades, bem como com a participação do
segmento industrial nacional — nacional e de brasileiros, eu ressalto! —,
logrou êxito em pesquisar, desenvolver e produzir pelo menos 6 sistemas bélicos
que jamais foram obtidos ao Sul do Equador: radar para defesa antiaérea,
simulador para treinamento de piloto de helicóptero, sistema de comando e
controle, sistema de guerra eletrônica, viaturas tubulares sobre rodas com
suspensão independente nas quatro rodas e sistema para emprego automático de metralhadora
em viatura blindada. Convém enfatizar que todos estão em uso ou poderiam estar
em uso no Exército. Essa amostra, pequena é bem verdade, comprova que o
desenvolvimento autônomo é possível.
E
um contra exemplo de nosso País? Tomemos uma referência industrial, alicerçada
em evolução tecnológica: a indústria automobilística brasileira que é uma das
seis maiores do mundo (pode ser a quinta, sétima ou oitava; isso é
irrelevante). Entretanto, somos o único país dentre os 10 maiores produtores de
automóvel que não possui uma empresa automobilística nacional, de propriedade
de nacionais e com capital majoritariamente nacional. Por imperioso, esse
segmento industrial pode ser considerado uma metáfora dos demais segmentos
importantes para qualquer país. O impacto disso sobre a área militar é enorme.
A quem recorrer para termos vetores de deslocamento nacionais? A solução: pagar
a pesquisa & desenvolvimento para empresas estrangeiras que já produzem vetor
similar. É nonsense em estado puro.
Por
ocasião da concepção de nossa Estratégia Nacional de Defesa, tive a
oportunidade de examinar as estratégias similares, britânica, francesa, chinesa
e australiana. Na época, fui quase inconveniente, pleiteando que, do ponto de
vista científico-tecnológico, fosse levado às mais altas instâncias militares a
necessidade de intensa e pertinaz participação no processo. Curiosamente, tive
no CTEx uma manhã como o Sr. Mangabeira Unger e cheguei a ser, ao lado de
outros, cogitado para participar de algumas reuniões para tratar do tema — não
foi possível! E eu aduziria que o setor de Ciência & Tecnologia militar
terrestre teve uma participação menor do que poderia! Um indicador das
consequências da END (ou EDN) foi o interesse das empresas estrangeiras do
setor de defesa em atuar no Brasil e até mesmo em adquirir empresas brasileiras
que, a duras penas e com apoio do Exército, pesquisaram e produziram alguma
coisa. Essas multinacionais entenderam o recado algo como: “É a hora, venham
que lhes acolhemos!”. Lamente-se similarmente a associação de empresas
brasileiras do setor de construção civil com multinacionais estrangeiras do
setor de defesa. As empresas brasileiras conseguem até construir mais no
exterior e as estrangeiras mantém a supremacia e impedem a nossa autonomia.
Nesse sentido, há companheiros que pregam com desassombro a associação como
forma de aceleração do crescimento. Eu também posso defender a ideia, desde que
haja uma participação paritária — o que é uma impossibilidade quando o insumo
essencial é o conhecimento, pois prevalece quem o detém.
O
que posso inferir do conteúdo dessas notas e informações? Não tenho a pretensão
de transmitir conhecimento ou convencer sobre isso ou aquilo. Mas é
inquestionável asseverar que no Brasil não há prioridade para o desenvolvimento
científico-tecnológico, como de resto, não há prioridade para o processo
educacional. Não há uma mentalidade de pregação da autonomia tecnológica e
estratégica. Tudo que vem do exterior continua sendo bom. De um simples objeto
doméstico a aeronaves e equipamentos militares, passando pelos serviços
culturais como, por exemplo, a música e o cinema. Fala-se com ar de
superioridade quando se tem acesso ao que vem do exterior. Penso que há uma
enorme lacuna a ser preenchida em nosso País. É a ausência de pensadores e
formadores de opinião concernentes aos interesses das Forças Armadas, alicerçados
no campo científico-tecnológico. Então, estes garranchos com características
panfletárias, sem preocupação com a estruturação e com o embasamento
conceitual, podem servir de estímulo para que companheiros talentosos, com maior
conhecimento e qualificação possam tratar apropriadamente da fundamental
questão da autonomia tecnológica e estratégica de nosso País.
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Este texto foi elaborado com
dados colhidos em fontes bibliográficas e obtidos em visitas a centros de
pesquisa científico-tecnológica da África do Sul, China, Rússia e Reino Unido.
Para um estudo mais cuidadoso e confirmação dos dados vale a pena consultar:
- The nuclear express, de Thomas C. Reed e Danny B. Stillman, Zenith Press, 2009;
- Defend the Realm – The
authorized history of MI5, de Christopher
Andrew, Borzoi Book, 2009;
- The making of the
atomic bomb, de Richard Rhodes, Simon & Schuster, edição
revista de 2012;
- Spying on the bomb, de Jeffrey T. Richelson, W. W. Norton & Company, 2007; e
- Robert Oppenheimer – A
life inside the center, de Ray Monk,
Dobleday, 2012.
PS1. Conquanto os dados levantados possam ser
considerados ultrapassados e/ou irrelevantes, vale ressaltar que as fontes
bibliográficas citadas, à exceção de uma apenas, foram elaboradas no período de
2009 a 2012. Nosso patamar organizacional impõe a renúncia a temas que os
países organizados não descuram.
PS2. O presente texto pode ser encontrado no
endereço:
http://ribeirosouto.blogspot.com.br/2014/12/autonomia-tecnologica-e-estrategica.html