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Caserna

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE?

Duas Mães

Era uma manhã cinzenta, chuvosa, como costumam ser as manhãs, e os dias, nos feriados de finados.  O cemitério estava lotado de gente, capas e guarda-chuvas que, abertos, formavam um, mórbido, caleidoscópio.
Do lado de fora, os camelôs estavam em estado de graça: nunca se vendeu tantas flores, velas, santinhos e outras bugigangas que se compra para honrar a memória dos que se foram. Para sempre, segundo os céticos e até a ressurreição da carne, para os crentes.
No meio da confusão e da profusão de flores, velas, cores, capas, guarda-chuvas, duas senhoras, sozinhas, uma branca e uma negra, ambas já em idade um pouco avançada, arrumavam os túmulos de algum parente. Elas mesmas limpavam o local, lavavam as lápides, retiravam as flores secas e trocavam por flores novas, raspavam os restos de velas antigas e preparavam os castiçais para receber velas novas.
Em um dado momento, se entreolharam por uns segundos, a senhora negra se aproximou, viu a foto de um jovem na lápide e perguntou: - Seu filho? Como ele morreu?
- Não sei bem - respondeu a branca. – Um dia ele saiu de casa dizendo que não aguentava mais ver as coisas do jeito que estavam, que o povo tinha direito à liberdade, que ia lutar com todas as forças para tirar os militares do poder e implantar no Brasil um sistema onde não haveria mais pobre, nem rico e em que todos seriam iguais. Só sei que, depois desse dia, nunca mais o vi, até o dia em que o corpo dele apareceu numa calçada, em um subúrbio do Rio, com um tiro no peito. Ele só não foi enterrado como indigente porque o motorista do rabecão era o nosso vizinho e o reconheceu. Foi Deus que ajudou. Nunca descobriram que o matou, nem porque atiraram nele. Não sei o que deu nele. Estava terminando a faculdade e namorava uma moça de quem eu gosto muito. Eu achava que logo, logo ia ser avó, e tudo acabou assim.
Já com lágrimas nos olhos, perguntou: - E você, é seu filho também, como ele morreu?
- É sim – respondeu a negra. – Conforme me informaram, ele morreu em um tiroteio com terroristas. Ele era Tenente do Exército, andava preocupado, vivia dizendo que havia uns “rebeldes sem causa”, um bando de terroristas que estava tentando derrubar o governo, dizendo que queriam a volta da democracia, mas o que pretendiam mesmo era implantar um regime comunista no Brasil. E que ele ia fazer o que pudesse pra ajudar a botar esses agitadores na cadeia. Foi de madrugada, sabe. Um amigo dele me contou o que houve. Parece que eles entraram em um tal de “aparelho”, mas a turma reagiu atirando e acertaram ele. Mesmo ferido, ele atirou e parece que acertou alguém, mas os sujeitos conseguiram fugir. Eu já estava de pé, preparando o café pra ele, quando aquele jipe verde parou na minha porta e o Major tocou a campainha do portão. Eu adivinhei logo: meu filho não ia voltar pra casa nunca mais. Também nunca descobriram quem eram os desgraçados que estavam no tal aparelho, nem quem atirou nele.

De repente, meio sem saber por que, entre lágrimas e soluços, as senhoras se abraçaram num gesto de consolo mútuo e, quase simultaneamente, concluíram: - “o seu filho pode ter matado o meu”.

Como que adivinhando, uma, o pensamento da outra, se afastaram e se olharam firmemente, como se pedissem desculpas pelas atitudes dos filhos.

Em profundo silêncio, recolheram cada uma suas coisas, saíram lado a lado do cemitério e, no portão, abraçaram-se mais uma vez, apertaram as mãos e se foram, cada uma carregando a sua dor.

Rio de Janeiro, 11/12/2014
Cel Jorge Bastos Costa
A propósito do relatório da “Comissão Nacional da VERSÃO”