Poucos definiram melhor o que se passou no Brasil, na
última década, do que o economista e ex-presidente do Banco Central,
Gustavo Franco: “perdemos uma década com hesitações ideológicas, e esse
tempo é irrecuperável”. A parte final da frase é um pouco forte. Em cem
ou duzentos anos, é provável que ninguém se lembre dos tropeços da
década passada. No tempo de nossa geração, e da próxima, não obstante, a
perda é imensa. Ela se refere aos erros e não-decisões do Brasil,
exatamente no meio do chamado bônus demográfico, a época de ouro para o
crescimento de qualquer país, em que ele apresenta a maior taxa
percentual de gente jovem entrando no mercado de trabalho, ou em pleno
vigor produtivo, sobre o total da população.
O Brasil poderia, na última década, ter afirmado sua posição como
liderança global pelos direitos humanos e pela democracia. Ao contrário,
gastou uma década abstendo-se, ano após ano, na ONU, nas votações sobre
violações de direitos humanos no Irã, país que mais pratica a pena de
morte e um dos que mais persegue jornalistas em todo o mundo. Em 2011, a
presidenta Dilma chegou a se recusar a receber a Prêmio Nobel da Paz e
dissidente iraniana, Shirin Ebadi, em visita ao Brasil. Ebadi, símbolo
da luta global pelo direito à igualdade de tratamento para as mulheres, e
não apenas no Irã. No plano regional, ao invés de se consolidar uma
posição de equilíbrio, liderando o continente no sentido da consolidação
democrática, gastou uma década oferecendo respaldo à destruição
sistemática das instituições, na Venezuela. E mesmo agora, em meio à
avalanche de mortes, repressão e violações explícitas de direitos, pelo
regime chavista, silencia. Isto para não falar do apoio explícito e
constrangedor do Estado brasileiro à ditadura de 55 anos, dos irmãos
Castro, em Cuba.
O Brasil poderia ter consolidado, nesta última década, a política de
estabilização e modernização econômica, inaugurada com o Plano Real. O
caminho parece claro: a autonomia do Banco Central; a rigorosa
independência funcional e técnica das agências reguladoras; a
progressiva redução da carga tributária; a desburocratização; a abertura
do país ao comércio internacional, com uma política agressiva de
acordos de livre comércio; a adoção do modelo de concessões e parcerias
público privadas, nas áreas de infraestrutura, como recente e
timidamente vimos em alguns terminais portuários e aeroportuários. O
mesmo raciocínio teria valido para a manutenção do modelo de concessões
nas reservas do pré-sal, oferecendo segurança jurídica e condições
favoráveis ao investimento privado. Tudo com o foco de aumentar a taxa
de investimento na economia, que se mantém estabilizada no patamar muito
baixo de 18%, claramente insuficiente para retirar o país da chamada
armadilha do baixo crescimento.
O Brasil poderia ter consolidado, nesta última década, a
política de estabilização e modernização econômica, inaugurada com o
Plano Real
O Brasil poderia ter avançado em uma reforma da lei trabalhista. A
CLT é uma das legislações trabalhistas mais rígidas do mundo. Foi criada
por Getúlio Vargas em 1943, em um Brasil com taxa de analfabetismo
superior a 50% e renda per capita de U$ 200. Um mundo sem computadores,
sem home office, sem dispositivos móveis que nos permitem trabalhar a
qualquer hora e em qualquer lugar. O Brasil faz de conta que não vê.
Orgulha-se de sua taxa de desemprego de 5%, escondendo seu exército de
mais de 44 milhões de trabalhadores informais. Na última década, em nada
avançamos. O país submete-se à pressão da estrutura sindical, ela mesma
financiada com os recursos deste arcaísmo que é o imposto sindical. Nem
mesmo a legislação que procura flexibilizar as contrações via
terceirização consegue avançar no Congresso. O jogo meramente
corporativo se traveste de heroísmo ideológico.
O Brasil poderia ter avançado, nesta última década, em uma ampla
reforma da gestão pública. As bases para esta reforma estão lá,
perfeitamente claras e definidas, desde 1998, com o Plano Diretor da
Reforma do Estado. As diretrizes da reforma foram testadas, com amplo
êxito, na rede de hospitais públicos do Estado de São Paulo, estruturada
na forma das Organizações Sociais, com contratos de gestão assinados
pelo Estado. O mesmo ocorre com as melhores instituições culturais, a
OSESP, Pinacoteca do Estado, Museu da Língua Portuguesa. Ao invés disso,
em dez anos, nenhum mísero contrato de gestão, em nenhum museu federal,
nenhum hospital, foi levado adiante pelo governo federal. A aposta
recaiu, sem tirar nem por, na inércia. O mesmo ocorre com o sistema
prisional. Mesmo que amplamente comprovado o sucesso das PPPs para a
gestão prisional, o país em nada avançou, nesta direção. Continuou-se
apostando no velho modelo de presídios estatais, com sua imensa e tosca
burocracia, e incapacidade crônica de gestão.
De um modo geral, o rumo tomado pelo país foi o da expansão da
máquina pública. O número de servidores públicos civis da União, que
vinha caindo sistematicamente, desde o início dos anos 90, voltou a
subir aceleradamente. Eram 501 mil funcionários públicos federais, em
2002. Hoje, este número passa de 650 mil. Pior: o número de cargos de
livre nomeação política, de alto escalão, os chamados DAS-4, DAS-5,
DAS-6, cresceu exatos 101% nos últimos 10 anos. No discurso oficial,
este crescimento aparece com uma exigência de “reconstrução do Estado”.
Quem quiser acreditar nisso, que o faça. Enxergue nisso uma obra
weberiana. Alguém menos otimista verá nisso simplesmente a expansão da
malha de cooptação política necessária para sustentar 39 ministérios, o
recorde da Republica, e acomodar os 14 partidos políticos que compõem a
base do Governo.
O Brasil poderia ter avançado em uma reforma da educação pública. Ao
contrário, o país apostou no modelo tradicional, das grandes redes
estatais de educação básica. O resultado é inequívoco: no ano 2000,
ocupávamos a 40ª posição, entre 41 países avaliados no PISA (exame
internacional de educação, dirigido pela OCDE); em 2012, ocupamos o 58º
lugar, em uma lista de 65 países avaliados. Durante este período, o
Chile consolidou sua posição de país mais bem colocado da América
Latina. Para alguns, tudo está bem. Afinal, avançamos um pouco, não?
Acostumados à mediocridade, podemos nos contentar. Quem sabe, em mais
dez anos, chegamos ao 53º lugar? Ano passado, participei em um debate no
Senado, sobre educação, com autoridades do governo federal. Imagine-se
qual era o país mais criticado? O Chile, obviamente. Único país
latino-americano a adotar, com alguma escala, o sistema de voucher
educação, que permite aos pais escolher a escola de seus filhos, e
incentiva a gestão privada do ensino. O Brasil, nesta década, continuou
insistindo no modelo dos “dois sistemas” de educação. A educação do
governo, para os mais pobres, e a dos colégios particulares, para os
mais ricos. O modelo está condenado. Irremediavelmente. Ele só fará
crescer, se mantido, o fosso da desigualdade social brasileira. Mas
parece que é nele que apostamos, cheios de orgulho.
Em termos de políticas sociais, o Brasil patina, lá se
vai uma década, em um falso debate. O debate sobre os méritos do
programa Bolsa Família
Em termos de políticas sociais, o Brasil patina, lá se vai uma
década, em um falso debate. O debate sobre os méritos do programa Bolsa
Família. Reconhecemos todos que o programa é meritório, e sabemos todos
de seus limites. Em meio ao falso debate, o país permanece inerte. Nas
palavras do economista Eduardo Giannetti, “gostaria de viver em um país
em que se comemorasse que um milhão de pessoas saiu do Bolsa Família,
passando a viver de seu próprio trabalho, e não o contrário, em que se
comemora que mais um milhão passou a depender do benefício”. O Brasil
não desenvolveu, em paralelo à concessão de uma renda mínima aos mais
pobres, estratégias de “economia clínica”, na expressão de Jeffrey
Sachs, capazes de promover a emancipação das pessoas em relação à
pobreza. A máquina social do governo foi inoculada, até a medula, pela
cultura do assistencialismo. O truque parece perfeito: qualquer crítica
ao programa, é chamada, imediatamente, de “conservadora”. Enquanto isto,
já passa de um quarto da população do país dependendo do programa. É
preciso perguntar se um programa de transferência de renda, necessário e
correto, não termina por tornar-se ele mesmo um promotor da pobreza,
quando concentra seus incentivos na dependência das pessoas em relação
ao Estado.
É evidente que há elementos positivos, na vida brasileira, na última
década. Particularmente, gosto do caminho aberto pelo ProUni, verdadeiro
sistema de parceria público privada, na educação superior. Gosto do
programa Ciências sem Fronteiras. E acho incrível, diferente de muita
gente, que o país tenha conquistado o direito de sediar os Jogos
Olímpicos, em 2016. O ponto é que o Brasil precisar corrigir o rumo.
Fazer as reformas de modernização, que deixou para trás, em algum
momento do início do século. Fazer o que Mario Covas anunciou, na
campanha de 89: dar um “choque de capitalismo”. Vindo de um notório
social-democrata como ele, a expressão adquire um sentido bastante
claro. O tema é romper com nossa velha e persistente tradição
patrimonial. Há uma década pela frente, novinha em folha, para ser
trilhada. O desafio é parar com a hesitação. Saber mudar, com
responsabilidade.
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