sábado, 31 de maio de 2014
quinta-feira, 29 de maio de 2014
O Brasil está com ódio de si mesmo
Arnaldo Jabor
Nunca pensei que a incompetência casada com o delírio ideológico promoveria este caos
O
Brasil está irreconhecível. Nunca pensei que a incompetência casada com
o delírio ideológico promoveria este caos. Há uma mutação histórica em
andamento. Não é uma fase transitória; nos últimos 12 anos, os donos do
poder estão a criar um sinistro “espírito do tempo” que talvez seja
irreversível. A velha “esquerda” sempre foi um sarapatel de populismo,
getulismo tardio, leninismo de galinheiro e agora um desenvolvimentismo
fora de época. A velha “direita”, o atraso feudal de nossos
patrimonialistas, sempre loteou o Estado pelos interesses oligárquicos.
A
chegada do PT ao governo reuniu em frente única os dois desvios : a
aliança das oligarquias com o patrimonialismo do Estado petista. Foi o
pior cenário para o retrocesso a que assistimos.
Antes
dessa terrível dualidade secular, a mudança de agenda do governo FHC
por sorte criou um pensamento mais “presentista”, começando com o fim da
inflação, com a ideia de que a administração pública é mais importante
que utopias, de que as reformas do Estado eram fundamentais. Medidas
simples, óbvias, indutivas, tentaram nos tirar da eterna “anestesia sem
cirurgia.” Foi o Plano Real que tirou 28 milhões de pessoas da pobreza, e
não este refrão mentiroso que os petistas repetem sobre o Bolsa Família
ou sobre o PAC imaginário.
Foi
um período renegado pelo PT como “neoliberal” ou besteiras assim, mas
deixou, para nossa sorte, algumas migalhas progressistas.
Tudo
foi ignorado e substituído pelo pensamento voluntarista de que
“sujeitos da história” fariam uma remodelagem da realidade, de modo a
fazê-la caber em suas premissas ideológicas. Aí começou o desastre que
me lembra a metáfora de Oswald de Andrade, de que “as locomotivas
estavam prontas para partir, mas alguém torceu uma alavanca e elas
partiram na direção oposta”.
Isso
causa não apenas o caos administrativo com a infraestrutura morta como
também está provocando uma mutação na psicologia e no comportamento das
pessoas. O Brasil está sendo desfigurado dentro de nossas cabeças, o
imaginário nacional está se deformando.
Há
uma grande neurose no ar. E isso nos alarma como a profecia de
Lévi-Strauss de “que chegaríamos à barbárie sem conhecer a civilização.”
Cenas como os 30 cadáveres ao sol no pátio do necrotério de Natal, onde
os corpos são cortados com peixeiras, fazem nossa pele mais dura e o
coração mais frio. Defeitos e doçuras do povo, que eram nossa marca,
estão dando lugar a sentimentos inesperados, dores nunca antes sentidas.
Quais são os sintomas mais visíveis desse trauma histórico?
Por
exemplo, o conceito de solidariedade natural, quase “instintiva”, está
acabando. Já há uma grande violência do povo contra si mesmo.
Garotos
decapitam outros numa prisão, ônibus são queimados por nada, com os
passageiros dentro, meninas em fogo, presos massacrados, crianças
assassinadas por pais e mães, uma revolta sem rumo, um rancor geral
contra tudo. O Brasil está com ódio de si mesmo. Cria-se um desespero de
autodestruição, e o país começa a se atacar.
Outro
nítido efeito na cabeça das pessoas é o fatalismo: “É assim mesmo, não
tem jeito, não.” O fatalismo é a aceitação da desgraça. E vêm a
desesperança e a tristeza. O Brasil está triste e envergonhado.
Outro
sintoma claro é que as instituições democráticas estão sem força,
desmoralizando-se, já que o próprio governo as desrespeita. Essa
fragilização da democracia traz de volta um desejo de autoritarismo na
base do “tem de botar para quebrar!”. Já vi muito chofer de táxi com
saudades da ditadura.
A
influência do petismo também recriou a cultura do maniqueísmo: o mal
está sempre no outro. Alguém é culpado disso tudo, ou seja, a “média
conservadora” e a oposição.
A
ausência de uma política contra a violência e a ligação de muitos
políticos com o tráfico estimula a organização do crime, que comanda as
cadeias e já demonstra uma busca explícita do horror. A crueldade é uma
nova arte incorporada em nossas cabeças, por tudo o que vemos no dia a
dia dos jornais e TV. Ninguém mata mais sem tortura. O horror está
ficando aceitável, potável.
O
desgoverno, os crimes sem solução, a corrupção escancarada deixam de
ser desvios da norma e vão criando uma nova cultura: a cultura da
marginalidade, a “normalização” do crime.
Uma
grande surpresa foi a condenação da Copa. Logo por nós, brasileiros
boleiros. Recusaram o “pão e circo” que Dilma/Lula bolaram, gastando
mais de R$ 30 bilhões em estádios para “impressionar os imperialistas” e
bajular as massas. Pelo menos isso foi um aumento da consciência
política.
Artistas
e intelectuais não sabem o que pensar — como refletir sem uma ponta de
esperança? Temos aí a “contemporaneidade” pessimista.
Cria-se
uma indiferença progressiva e vontade de fuga. Nunca vi tanta gente
falando em deixar o país e ir morar fora. As mutações mentais são
visíveis: nos rostos tristes nos ônibus abarrotados, na rápida cachaça
às 6h da manhã dos operários antes de enfrentar mais um dia de inferno,
nos feios, nos obesos, no desânimo das pessoas nas ruas, no pessimismo
como único assunto em mesas de bar.
Vimos
em junho passado manifestações bacanas, mas sem rumo; contra o quê? Um
mal-estar generalizado e sem clareza, logo escrachado pelos black blocs,
a prova estúpida de nosso infantilismo político.
É
difícil botar a pasta de dente para dentro do tubo. Há uma
retroalimentação da esculhambação generalizada que vai destruindo as
formas de combatê-la. Tecnicamente não estamos equipados para resolver
as deformações que se acumulam como enchentes, como um rio sem foz.
E
o pior é que, por trás da cultura do crime e da corrupção, consolida-se
a cultura da mentira, do bolivarianismo, da preguiça incompetente e da
irresponsabilidade pública.
O
Brasil está sofrendo uma mutação gravíssima, e nossas cabeças também. É
preciso tirar do poder esses caras que se julgam os “sujeitos da
história”. Até que são mesmo, só que de uma história suja e calamitosa.
quarta-feira, 21 de maio de 2014
Volto ou não volto?
Arnaldo Jabor
'Será que vale a pena botar em risco minha imagem?'
“Volto ou não volto? Fico aqui no meu banheiro pensando, diante de espelhos
sem fim. Quantos Lulas refletidos ao infinito! É como se fosse um povo de lulas.
Isso! Eu sou o povo. Sou um fenômeno de Fé. Quanto mais me denunciam, mais eu
cresço. Eu desmoralizei escândalos, vulgarizei alianças, subverti tudo,
inclusive a subversão. Eu tenho o design perfeito para isso. ‘Lula’ é um nome
doce, carinhoso, familiar. ‘Lula’ é fácil de entender. Agora, aqui sozinho,
Marisa está dormindo, posso me analisar. Volto ou não volto?
“Ai que saudades das mãos da rainha Elizabeth — eu beijei sua mão com um vago
perfume de verbena. Ai que saudades dos tempos em que eu posava com outros
presidentes, com o Obama me puxando o saco dizendo que eu era o ‘cara’. Como era
bom ver intelectuais metidos a besta me olhando com fervor, me achando o símbolo
do futuro, como se eu tivesse uma foice e martelo na mão. Comi várias
professoras da universidade; eu era um messias para elas, que nunca tinham visto
um operário a não ser o encanador de seus banheiros. E os banqueiros e os
empresários que tinham medo de mim, mas se ajoelhavam por grana do BNDES,
enchendo o partido com dinheiro para campanhas?
“Mas está na hora de decidir. Tenho de ser cruel comigo mesmo. Vamos lá.
Ninguém está vendo. Autocrítica: a verdade é que eu nunca me interessei pelo bem
do povo. Essa visão de um operário pensando no país é uma imagem romântica de
pequenos burgueses. Operário quer é subir na vida. Fui mestre nisso. Eu odiava o
calor daqueles tetos de Eternit na fábrica, aquela cachaça morna na hora do
almoço.
“Aquele torno que cortou meu mindinho foi minha primeira grande sorte (tem
gente que até acha que eu mesmo cortei...). Virei líder sindical. Foi a sorte
grande. Sem dedo, descobri a massa. A massa operária se postava diante de mim e
eu, com meus olhos em fogo, vi o mar de gente na greve dos metalúrgicos e tive a
luz de berrar: ‘Vocês me dão o posto de comandante das negociações com os
patrões?’
“Foi um mar de vozes: ‘Sim! Lulaaa!’ Naquele momento, eu vi que chegaria à
presidência. Eu vi a facilidade de convencer o povão de fazer o que eu quisesse.
Depois, os evangélicos descobriram o mesmo, mas eu fui pioneiro. Aliás, me
baseei no Jânio Quadros, com vassoura e caspa artificial. Ele foi o criador da
política do espetáculo. Eu era bonitinho, boas sindicalistas eu papei... Era
fácil, não precisava nem cantar. Mas, sejamos sérios. Ali, no espelho, me vejo
multiplicado e tenho de decidir.
“Que é melhor para mim? Os caras falam: ‘Volta, que o povo quer!’ E eu? Será
que me interessa?
“Será que vai ser bom para minha imagem no futuro? Porque hoje minha imagem
está joia. Ganho 400 paus por palestra, vou ao exterior e falo qualquer coisa,
eles me amam a priori, eu, um herói operário.
“Os franceses e outros babacas, bisbilhoteiros das ‘revoluções’ tropicais,
jamais entenderão o que tive de fazer para crescer no poder.
“Jamais entenderão as sujeiras que tolerei para manter as mãos limpas, como
me dei bem com os 300 picaretas que denunciei antes e que depois foram minha
tropa de choque. Jamais entenderão que eu nunca soube de nada, sabendo de
tudo...
“Foi aí que se fez a luz! Eu entendi que se eu quisesse fazer reformas,
mudanças radicais, eu perderia meu poder de messias. Eu vi que o verdadeiro
Brasil é o PMDB e os corruptos todos. Tudo foi construído assim, por séculos,
nesse adultério entre a grana pública e privada. Só a corrupção move o país.
Mantive o legado do FHC e chamei-o de herança maldita... FHC não sabia falar com
o povão... Ele fez tudo e não é nada, eu não fiz nada e sou tudo. Também nunca
entendi por que os tucanos não defenderam o governo dele. Nem ele.
“Quando vi que era a ‘estratégia do medo’, caí matando.
“Me aproveitei do Plano Real e depois disse que eu é que fizera a queda da
inflação. E agora a porra está voltando...
“Até o Roberto Jefferson me deu sorte, me ajudou muito denunciando os babacas
dos comunistas que me atazanavam desde o inicio. A Marisa dizia: ‘Essa gente não
presta...’ E eu não ouvia... Veio o Jefferson (obrigado, Roberto...), expulsa os
bolcheviques da minha cola e eu pude inventar a nova ideologia: um grande balé
na mídia para manter o povo feliz. Eles pensavam: se ele chegou lá, nós também
podemos...Ele é ‘nóis’. Não entendo como o FHC não teve a grandeza nem de um
‘populismozinho’.
“Tudo tão simples; basta falar como eles,
falar de futebol, fingir de vítima, injustiçado por ter origem humilde, dividir
o mundo em ricos e pobres, mentir estatísticas numa boa, falar do futuro.
“Depois, espelho meu, tive mais sorte. Começou o surto dos emergentes. Como
entrou grana aqui! Gastei tudo para consolidar meu poder. Mas chega de saudade;
a realidade é: afinal, volto ou não volto?
“O perigo é eu voltar e ter de lidar com a
cagada que eles fizeram. Essa Dilma e o Mantega... Porra...
“Já pensou? Ter de acordar cedo, beber meu
uísque 30 anos só de noite... E aguentar o Berzoini, o Rui Falcão, falando como
se morassem na URSS... E pior é que os comunas vão ficar mais assanhados, mais
‘aloprados’ ainda. Vão querer mais ‘bolivarianismo’. Já me aporrinharam e
fu*&ram tudo com o mensalão... Eu bem que avisei: ‘Vão com menos sede ao
pote!...’ Só fizeram merda e depois tive de me virar, dizer que não sabia. Só me
encheram o saco. Mofem na Papuda.
“Se eu voltar, vou ter de satisfazer essa laia. Vou ter de reprimir a mídia.
Disso até gosto, para assegurar minha bela imagem no futuro.
“Será que vale a pena botar em risco minha imagem?
“E tem mais: minha maior descoberta foi que o
Brasil não tem conserto. É impossível governar. A política não rola mais. É um
parafuso espanado. Se os tucanos ganharem, vão se fu*&er também.
“Minhas imagens: quantos lulas refletidos nos espelhos...
“‘Lula! Que você está fazendo aí, trancado?’ ‘Já
vou, Marisa; porra, não posso nem ir ao banheiro?’
“Isso, espelhos meus! Batam palmas para mim! Milhares de ‘eus’ me aplaudindo!
Obrigado, meu povo!
“E aí? Volto ou não volto?”
"O Mundo seria melhor se os Homens de Bem tivessem a coragem dos Canalhas" - Arnaldo Jabor
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/volto-ou-nao-volto-12536629#ixzz32M8EwQY9
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domingo, 11 de maio de 2014
A VOLTA DO RETORNO
Fernando Gabeira* - O Estado de S.Paulo -
09 maio 14
"Cuidado com a volta do
retorno."
Quem me dizia sempre isso era Marinho Celestino, um cabeleireiro capixaba que estudou cinema em Paris e morreu no Brasil. Não sei se queria expressar com isso a circularidade do tempo ou se usava a expressão apenas para advertir os perigos de uma recaída. O movimento "Volta, Lula" sempre me lembra a expressão de Marinho Celestino: a volta do retorno, uma espécie de bumerangue.
Durante um tempo, ele se comportou apenas como um ex-presidente. Achei que merecia o habeas língua que sempre conferimos àqueles que já cumpriram sua tarefa. Clarice Lispector, num belo conto chamado Feliz Aniversário, conta a história de uma festa para a mulher que fazia 89 anos e de quem todos queriam arrancar uma palavra. A velha permaneceu calada, apesar de muitas provocações, até que, no final da festa, resolveu falar só isto: "Não sou surda!".
Para mim, Lula ainda é um jovem. Desenvolvi uma tolerância a suas frases e, em certos momentos, até me diverti com elas. Era só um ex-presidente, com direito a parar de fazer sentido.
Agora, que querem lançá-lo de novo à Presidência, é preciso ter cuidado com a volta do retorno. Não me preocupa tanto que tenha dito que o julgamento do mensalão foi 80% político e 20% técnico. Lula aprendeu, ao longo destes anos, a usar os números para tornar a mentira convincente. Se o apertarmos num debate, ele vai conceder: "Está bem, então 79% político, 21% técnico". Ele sabe que números quebrados convencem ainda mais que os redondos. O que me preocupou mais nessa entrevista aos portugueses foi ele ter encarnado o espírito de salvador, um arquétipo da nossa cultura luso-brasileira, um Dom Sebastião.
Ele disse que, apesar do que noticiavam os jornais, TV e oposição, o povo sempre olharia nos seus olhos e acreditaria na sua verdade. Isso implica uma visão pobre da democracia e, sobretudo, do povo. Como se as pessoas fossem completamente blindadas diante do debate nacional, como se não fossem curiosas, não formassem opinião por meio da troca de ideias, como se não estivessem constantemente reavaliando suas crenças com novos dados.
Nessa frase de Lula, o povo só se acende com o seu olhar hipnótico e é nele que procura a verdade, não nos fatos e nas evidências que se desdobram.
Cuidado com a volta do retorno. A realidade mostra que as pessoas avançaram, que valorizam melhorias materiais, mas pedem também mais do que isso. Seria interessante para o PT e para o próprio Lula darem uma volta pelas ruas do Brasil e tentar a fórmula olho no olho. No mínimo, vão se desapontar.
Lula não conseguiu, com olhar magnético, convencer o povo brasileiro de que a Copa foi uma decisão acertada num país com tantas dificuldades. Tanto ele quanto Gilberto Carvalho ficam perplexos diante das críticas. Como é possível não celebrar a Copa no Brasil?
Neste caso, a fantasia de uma identificação mítica com o povo vai para o espaço. Como restaurá-la? Com olho no olho?
O olhar número cinco falhou. A única saída é partir para outros truques, como, por exemplo, fazer com que os copos se movam sozinhos nas mesas, como naquelas sessões espíritas no princípio do século 20.
Na entrevista em Portugal, Lula procurou explicar também por que o povo olhava no seu olho e o apoiava. Mencionou, mais uma vez, a história da mãe que o aconselhou a andar sempre de cabeça erguida. Um conselho de mãe e o olho no olho são os talismãs que o protegem de todas as acusações, que lhe dão força, inclusive, para proteger em seu governo grandes e pequenos bandidos da política nacional. Não e à toa que alguns ratos começam a abandonar o navio da candidatura Dilma. Eles anseiam também por migalhas desse poder de Lula, querem se esconder embaixo do manto protetor.
E Dilma, ou o fantasma dela, apareceu na televisão. Gostei da maquilagem, do tom da pele, embora para muitos ela estivesse um pouco pálida. Os profissionais trabalharam bem no rosto, no penteado e mesmo nas ideias do texto. Você querem mudança? Nós somos a mudança.
Está chegando um tempo em que o abuso das palavras perde sua elasticidade. Um tempo em que a onipotência de um suposto magnetismo tem de descer ao mundo dos debates, do choque de ideias, da avaliação permanente dos rumos do País. É o ocaso da magia. Da cartola, saem apenas os velhos e combalidos coelhos: aumento da cesta básica, modesta redução no Imposto de Renda.
O naufrágio se define com a perda do horizonte. Mesmo o famoso mercado parece esperar a derrota de Dilma. Quando cai nas pesquisas, a Bolsa sobe. Mas nem sempre o mercado tem razão diante da política. Senão, substituiríamos o debate parlamentar pelo grito dos corretores na Bolsa. Realizar uma política social generosa, muitas vezes, bate de frente com o mercado. Só é possível levá-la adiante, de fato, num quadro econômico de crescimento sustentável. E parece existir no mercado a compreensão de que a atual política econômica está fracassando, de que Dilma foi má administradora em campos vitais, como a energia, e incompetente para deter a degradação da Petrobras.
Não sei como Dilma e Lula vão se apresentar na campanha. Ele vai precisar de uma lente de contatos para mudar a cor dos olhos, em caso de necessidade. Dilma não poderá repetir apenas o que escrevem os marqueteiros. Ela apenas registrou que os ratos abandonavam o barco, mas não se perguntou em nenhum momento por que o barco começa a afundar.
No debate, os dois, cada um com seu estilo, vão ter de explicar o que fizeram do Brasil, que se vê agora sugado pela corrupção, gastando fortunas com as obras de uma Copa trazida pela visão megalomaníaca de Lula. Na África do Sul, ele até convidou atletas estrangeiros para se mudarem para o Brasil porque haveria tanta competição esportiva que nossas equipes não seriam capazes de disputar todas.
Nada como esperar a campanha presidencial de 2014. Por enquanto, o discurso do governo é 80% mentira e 20% malandragem.
Quem me dizia sempre isso era Marinho Celestino, um cabeleireiro capixaba que estudou cinema em Paris e morreu no Brasil. Não sei se queria expressar com isso a circularidade do tempo ou se usava a expressão apenas para advertir os perigos de uma recaída. O movimento "Volta, Lula" sempre me lembra a expressão de Marinho Celestino: a volta do retorno, uma espécie de bumerangue.
Durante um tempo, ele se comportou apenas como um ex-presidente. Achei que merecia o habeas língua que sempre conferimos àqueles que já cumpriram sua tarefa. Clarice Lispector, num belo conto chamado Feliz Aniversário, conta a história de uma festa para a mulher que fazia 89 anos e de quem todos queriam arrancar uma palavra. A velha permaneceu calada, apesar de muitas provocações, até que, no final da festa, resolveu falar só isto: "Não sou surda!".
Para mim, Lula ainda é um jovem. Desenvolvi uma tolerância a suas frases e, em certos momentos, até me diverti com elas. Era só um ex-presidente, com direito a parar de fazer sentido.
Agora, que querem lançá-lo de novo à Presidência, é preciso ter cuidado com a volta do retorno. Não me preocupa tanto que tenha dito que o julgamento do mensalão foi 80% político e 20% técnico. Lula aprendeu, ao longo destes anos, a usar os números para tornar a mentira convincente. Se o apertarmos num debate, ele vai conceder: "Está bem, então 79% político, 21% técnico". Ele sabe que números quebrados convencem ainda mais que os redondos. O que me preocupou mais nessa entrevista aos portugueses foi ele ter encarnado o espírito de salvador, um arquétipo da nossa cultura luso-brasileira, um Dom Sebastião.
Ele disse que, apesar do que noticiavam os jornais, TV e oposição, o povo sempre olharia nos seus olhos e acreditaria na sua verdade. Isso implica uma visão pobre da democracia e, sobretudo, do povo. Como se as pessoas fossem completamente blindadas diante do debate nacional, como se não fossem curiosas, não formassem opinião por meio da troca de ideias, como se não estivessem constantemente reavaliando suas crenças com novos dados.
Nessa frase de Lula, o povo só se acende com o seu olhar hipnótico e é nele que procura a verdade, não nos fatos e nas evidências que se desdobram.
Cuidado com a volta do retorno. A realidade mostra que as pessoas avançaram, que valorizam melhorias materiais, mas pedem também mais do que isso. Seria interessante para o PT e para o próprio Lula darem uma volta pelas ruas do Brasil e tentar a fórmula olho no olho. No mínimo, vão se desapontar.
Lula não conseguiu, com olhar magnético, convencer o povo brasileiro de que a Copa foi uma decisão acertada num país com tantas dificuldades. Tanto ele quanto Gilberto Carvalho ficam perplexos diante das críticas. Como é possível não celebrar a Copa no Brasil?
Neste caso, a fantasia de uma identificação mítica com o povo vai para o espaço. Como restaurá-la? Com olho no olho?
O olhar número cinco falhou. A única saída é partir para outros truques, como, por exemplo, fazer com que os copos se movam sozinhos nas mesas, como naquelas sessões espíritas no princípio do século 20.
Na entrevista em Portugal, Lula procurou explicar também por que o povo olhava no seu olho e o apoiava. Mencionou, mais uma vez, a história da mãe que o aconselhou a andar sempre de cabeça erguida. Um conselho de mãe e o olho no olho são os talismãs que o protegem de todas as acusações, que lhe dão força, inclusive, para proteger em seu governo grandes e pequenos bandidos da política nacional. Não e à toa que alguns ratos começam a abandonar o navio da candidatura Dilma. Eles anseiam também por migalhas desse poder de Lula, querem se esconder embaixo do manto protetor.
E Dilma, ou o fantasma dela, apareceu na televisão. Gostei da maquilagem, do tom da pele, embora para muitos ela estivesse um pouco pálida. Os profissionais trabalharam bem no rosto, no penteado e mesmo nas ideias do texto. Você querem mudança? Nós somos a mudança.
Está chegando um tempo em que o abuso das palavras perde sua elasticidade. Um tempo em que a onipotência de um suposto magnetismo tem de descer ao mundo dos debates, do choque de ideias, da avaliação permanente dos rumos do País. É o ocaso da magia. Da cartola, saem apenas os velhos e combalidos coelhos: aumento da cesta básica, modesta redução no Imposto de Renda.
O naufrágio se define com a perda do horizonte. Mesmo o famoso mercado parece esperar a derrota de Dilma. Quando cai nas pesquisas, a Bolsa sobe. Mas nem sempre o mercado tem razão diante da política. Senão, substituiríamos o debate parlamentar pelo grito dos corretores na Bolsa. Realizar uma política social generosa, muitas vezes, bate de frente com o mercado. Só é possível levá-la adiante, de fato, num quadro econômico de crescimento sustentável. E parece existir no mercado a compreensão de que a atual política econômica está fracassando, de que Dilma foi má administradora em campos vitais, como a energia, e incompetente para deter a degradação da Petrobras.
Não sei como Dilma e Lula vão se apresentar na campanha. Ele vai precisar de uma lente de contatos para mudar a cor dos olhos, em caso de necessidade. Dilma não poderá repetir apenas o que escrevem os marqueteiros. Ela apenas registrou que os ratos abandonavam o barco, mas não se perguntou em nenhum momento por que o barco começa a afundar.
No debate, os dois, cada um com seu estilo, vão ter de explicar o que fizeram do Brasil, que se vê agora sugado pela corrupção, gastando fortunas com as obras de uma Copa trazida pela visão megalomaníaca de Lula. Na África do Sul, ele até convidou atletas estrangeiros para se mudarem para o Brasil porque haveria tanta competição esportiva que nossas equipes não seriam capazes de disputar todas.
Nada como esperar a campanha presidencial de 2014. Por enquanto, o discurso do governo é 80% mentira e 20% malandragem.
*Fernando Gabeira é jornalista.
sexta-feira, 9 de maio de 2014
A ERA DA HESITAÇÃO
- Autor: Fernando Luis Schuler
Poucos definiram melhor o que se passou no Brasil, na
última década, do que o economista e ex-presidente do Banco Central,
Gustavo Franco: “perdemos uma década com hesitações ideológicas, e esse
tempo é irrecuperável”. A parte final da frase é um pouco forte. Em cem
ou duzentos anos, é provável que ninguém se lembre dos tropeços da
década passada. No tempo de nossa geração, e da próxima, não obstante, a
perda é imensa. Ela se refere aos erros e não-decisões do Brasil,
exatamente no meio do chamado bônus demográfico, a época de ouro para o
crescimento de qualquer país, em que ele apresenta a maior taxa
percentual de gente jovem entrando no mercado de trabalho, ou em pleno
vigor produtivo, sobre o total da população.
O Brasil poderia, na última década, ter afirmado sua posição como
liderança global pelos direitos humanos e pela democracia. Ao contrário,
gastou uma década abstendo-se, ano após ano, na ONU, nas votações sobre
violações de direitos humanos no Irã, país que mais pratica a pena de
morte e um dos que mais persegue jornalistas em todo o mundo. Em 2011, a
presidenta Dilma chegou a se recusar a receber a Prêmio Nobel da Paz e
dissidente iraniana, Shirin Ebadi, em visita ao Brasil. Ebadi, símbolo
da luta global pelo direito à igualdade de tratamento para as mulheres, e
não apenas no Irã. No plano regional, ao invés de se consolidar uma
posição de equilíbrio, liderando o continente no sentido da consolidação
democrática, gastou uma década oferecendo respaldo à destruição
sistemática das instituições, na Venezuela. E mesmo agora, em meio à
avalanche de mortes, repressão e violações explícitas de direitos, pelo
regime chavista, silencia. Isto para não falar do apoio explícito e
constrangedor do Estado brasileiro à ditadura de 55 anos, dos irmãos
Castro, em Cuba.
O Brasil poderia ter consolidado, nesta última década, a política de
estabilização e modernização econômica, inaugurada com o Plano Real. O
caminho parece claro: a autonomia do Banco Central; a rigorosa
independência funcional e técnica das agências reguladoras; a
progressiva redução da carga tributária; a desburocratização; a abertura
do país ao comércio internacional, com uma política agressiva de
acordos de livre comércio; a adoção do modelo de concessões e parcerias
público privadas, nas áreas de infraestrutura, como recente e
timidamente vimos em alguns terminais portuários e aeroportuários. O
mesmo raciocínio teria valido para a manutenção do modelo de concessões
nas reservas do pré-sal, oferecendo segurança jurídica e condições
favoráveis ao investimento privado. Tudo com o foco de aumentar a taxa
de investimento na economia, que se mantém estabilizada no patamar muito
baixo de 18%, claramente insuficiente para retirar o país da chamada
armadilha do baixo crescimento.
O Brasil poderia ter consolidado, nesta última década, a
política de estabilização e modernização econômica, inaugurada com o
Plano Real
O Brasil poderia ter avançado em uma reforma da lei trabalhista. A
CLT é uma das legislações trabalhistas mais rígidas do mundo. Foi criada
por Getúlio Vargas em 1943, em um Brasil com taxa de analfabetismo
superior a 50% e renda per capita de U$ 200. Um mundo sem computadores,
sem home office, sem dispositivos móveis que nos permitem trabalhar a
qualquer hora e em qualquer lugar. O Brasil faz de conta que não vê.
Orgulha-se de sua taxa de desemprego de 5%, escondendo seu exército de
mais de 44 milhões de trabalhadores informais. Na última década, em nada
avançamos. O país submete-se à pressão da estrutura sindical, ela mesma
financiada com os recursos deste arcaísmo que é o imposto sindical. Nem
mesmo a legislação que procura flexibilizar as contrações via
terceirização consegue avançar no Congresso. O jogo meramente
corporativo se traveste de heroísmo ideológico.
O Brasil poderia ter avançado, nesta última década, em uma ampla
reforma da gestão pública. As bases para esta reforma estão lá,
perfeitamente claras e definidas, desde 1998, com o Plano Diretor da
Reforma do Estado. As diretrizes da reforma foram testadas, com amplo
êxito, na rede de hospitais públicos do Estado de São Paulo, estruturada
na forma das Organizações Sociais, com contratos de gestão assinados
pelo Estado. O mesmo ocorre com as melhores instituições culturais, a
OSESP, Pinacoteca do Estado, Museu da Língua Portuguesa. Ao invés disso,
em dez anos, nenhum mísero contrato de gestão, em nenhum museu federal,
nenhum hospital, foi levado adiante pelo governo federal. A aposta
recaiu, sem tirar nem por, na inércia. O mesmo ocorre com o sistema
prisional. Mesmo que amplamente comprovado o sucesso das PPPs para a
gestão prisional, o país em nada avançou, nesta direção. Continuou-se
apostando no velho modelo de presídios estatais, com sua imensa e tosca
burocracia, e incapacidade crônica de gestão.
De um modo geral, o rumo tomado pelo país foi o da expansão da
máquina pública. O número de servidores públicos civis da União, que
vinha caindo sistematicamente, desde o início dos anos 90, voltou a
subir aceleradamente. Eram 501 mil funcionários públicos federais, em
2002. Hoje, este número passa de 650 mil. Pior: o número de cargos de
livre nomeação política, de alto escalão, os chamados DAS-4, DAS-5,
DAS-6, cresceu exatos 101% nos últimos 10 anos. No discurso oficial,
este crescimento aparece com uma exigência de “reconstrução do Estado”.
Quem quiser acreditar nisso, que o faça. Enxergue nisso uma obra
weberiana. Alguém menos otimista verá nisso simplesmente a expansão da
malha de cooptação política necessária para sustentar 39 ministérios, o
recorde da Republica, e acomodar os 14 partidos políticos que compõem a
base do Governo.
O Brasil poderia ter avançado em uma reforma da educação pública. Ao
contrário, o país apostou no modelo tradicional, das grandes redes
estatais de educação básica. O resultado é inequívoco: no ano 2000,
ocupávamos a 40ª posição, entre 41 países avaliados no PISA (exame
internacional de educação, dirigido pela OCDE); em 2012, ocupamos o 58º
lugar, em uma lista de 65 países avaliados. Durante este período, o
Chile consolidou sua posição de país mais bem colocado da América
Latina. Para alguns, tudo está bem. Afinal, avançamos um pouco, não?
Acostumados à mediocridade, podemos nos contentar. Quem sabe, em mais
dez anos, chegamos ao 53º lugar? Ano passado, participei em um debate no
Senado, sobre educação, com autoridades do governo federal. Imagine-se
qual era o país mais criticado? O Chile, obviamente. Único país
latino-americano a adotar, com alguma escala, o sistema de voucher
educação, que permite aos pais escolher a escola de seus filhos, e
incentiva a gestão privada do ensino. O Brasil, nesta década, continuou
insistindo no modelo dos “dois sistemas” de educação. A educação do
governo, para os mais pobres, e a dos colégios particulares, para os
mais ricos. O modelo está condenado. Irremediavelmente. Ele só fará
crescer, se mantido, o fosso da desigualdade social brasileira. Mas
parece que é nele que apostamos, cheios de orgulho.
Em termos de políticas sociais, o Brasil patina, lá se
vai uma década, em um falso debate. O debate sobre os méritos do
programa Bolsa Família
Em termos de políticas sociais, o Brasil patina, lá se vai uma
década, em um falso debate. O debate sobre os méritos do programa Bolsa
Família. Reconhecemos todos que o programa é meritório, e sabemos todos
de seus limites. Em meio ao falso debate, o país permanece inerte. Nas
palavras do economista Eduardo Giannetti, “gostaria de viver em um país
em que se comemorasse que um milhão de pessoas saiu do Bolsa Família,
passando a viver de seu próprio trabalho, e não o contrário, em que se
comemora que mais um milhão passou a depender do benefício”. O Brasil
não desenvolveu, em paralelo à concessão de uma renda mínima aos mais
pobres, estratégias de “economia clínica”, na expressão de Jeffrey
Sachs, capazes de promover a emancipação das pessoas em relação à
pobreza. A máquina social do governo foi inoculada, até a medula, pela
cultura do assistencialismo. O truque parece perfeito: qualquer crítica
ao programa, é chamada, imediatamente, de “conservadora”. Enquanto isto,
já passa de um quarto da população do país dependendo do programa. É
preciso perguntar se um programa de transferência de renda, necessário e
correto, não termina por tornar-se ele mesmo um promotor da pobreza,
quando concentra seus incentivos na dependência das pessoas em relação
ao Estado.
É evidente que há elementos positivos, na vida brasileira, na última
década. Particularmente, gosto do caminho aberto pelo ProUni, verdadeiro
sistema de parceria público privada, na educação superior. Gosto do
programa Ciências sem Fronteiras. E acho incrível, diferente de muita
gente, que o país tenha conquistado o direito de sediar os Jogos
Olímpicos, em 2016. O ponto é que o Brasil precisar corrigir o rumo.
Fazer as reformas de modernização, que deixou para trás, em algum
momento do início do século. Fazer o que Mario Covas anunciou, na
campanha de 89: dar um “choque de capitalismo”. Vindo de um notório
social-democrata como ele, a expressão adquire um sentido bastante
claro. O tema é romper com nossa velha e persistente tradição
patrimonial. Há uma década pela frente, novinha em folha, para ser
trilhada. O desafio é parar com a hesitação. Saber mudar, com
responsabilidade.
Fernando Luis Schuler é diretor geral do Instituto
Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) no Rio de Janeiro. Doutor em
filosofia e mestre em ciências políticas pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). É especialista em políticas públicas e gestão
governamental pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e em
cooperação internacional pela Universidade de Barcelona. Foi diretor da
Fundação Iberê Camargo, chefe de gabinete do Ministério da Cultura,
secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio
Grande do Sul.
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